Alexandre Ribondi –
Em dezembro de 1973, eu saía da Biblioteca Central da Universidade de Brasília quando policiais à paisana me abordaram e me levaram. A minha prisão teve testemunhas que, no entanto, não comunicaram o fato a nenhum grupo de esquerda (eu fazia parte de um deles) porque era “um viado” que estava sendo levado. Na prisão, não fui tratado apenas como um “estudante de esquerda”. Os torturadores não deixavam de lembrar que era mais um homossexual.
No início dos anos 1980, escrevi um artigo longo sobre a perseguição sistemática às pessoas LGBT em Cuba e fui criticado por estar denunciando uma “questão menor”, se comparada à grandeza da revolução cubana. Isso me ensinou que, quando se trata de orientação sexual, a esquerda e a direita andam de mãos dadas e pisam sobre as nossas cabeças.
Atualmente, a Rússia tem chamado a atenção pelo tratamento que dispensa à população LGBT, mas, mesmo assim, o documentário Bem-Vindo à Chechênia provavelmente não merecerá aplausos de parte da esquerda que não acredita que o presidente Putin promova e concorde com a perseguição a gays, lésbicas e transgêneros.
O presidente russo já afirmou que não se pode perseguir homossexuais mas, ao mesmo tempo, não sabe lidar com a questão. Em 2019, durante um encontro do G2o no Japão, declarou que os ideais de liberdade de gênero são impostos às pessoas. “Agora, existe todo tipo de coisas e inventamos cinco ou seis gêneros. Eu nem entendo o que é isso”, disse Putin.
A Rússia despenalizou a homossexualidade ainda na década de 1990 mas os transexuais e transgêneros são considerados portadores de transtornos mentais, o que os impede de obter carteira de motorista. E existe uma lei que proíbe a divulgação de “relacionamentos não tradicionais”, o que confirma o fato de que o presidente russo tem tornado mais difícil ainda a vida das pessoas LGBT. Além disso, a Tsargard TV pratica a homofobia abertamente e já ofereceu passagem aérea internacional só de ida para que gays e lésbicas deixem o país e nunca mais voltem.
O tratamento dado aos homossexuais na Rússia, hoje, é considerado internacionalmente como “uma das piores violações dos direitos humanos na era pós-soviética”. Lyudmila Alexeyeva, ativista de direitos humanos e historiadora russa, considera que o seu país está dando “um passo em direção à Idade Média”. Outra ativista, a lésbica Elena Grigoryeva, se surpreendeu ao ver o seu nome numa lista, feita pelo site homofóbico Pila, de pessoas que deveriam morrer. Declarou que aquilo não era verdade e três semanas depois foi encontrada morta a facadas perto da sua casa. A polícia russa se recusa a investigar o caráter homofóbico do crime e alega que a vítima era “antissocial” e que “bebia com frequência”.
A Chechênia faz parte da Federação Russa e é sabido que o seu presidente, Ramzan Kadyrov, goza da proteção direta de Putin. Por isso, sua polícia sente-se à vontade para perseguir, ameaçar e matar homossexuais em Moscou ou em qualquer outra cidade da Rússia. No documentário de David France, Bem-vindo à Chechênia, dois homossexuais russos (um homem e uma mulher) tiveram que fugir para lugares ignorados porque Kadyrov ameaçava matá-los e as suas famílias - espantosamente, nenhum deles morava na Chechênia.
Em 2010, Fidel Castro pediu desculpas pela homofobia empreendida pelo seu governo, que marginalizou os homossexuais enviados a campos de trabalho forçado. Em novembro de 2020, uma advogada lança ofensa a gays dentro de uma padaria na cidade de São Paulo e, no dia seguinte, pede desculpas pela internet. E daí? Em ambos os casos, o mal já havia sido feito. Em Cuba, vidas foram interrompidas, futuros foram destroçados. Em São Paulo, os homossexuais agredidos têm que trabalhar o amor próprio para não se abateram com o desprezo de que foram vítimas.
Se para a comunidade negra internacional, não basta não ser racista, tem que ser antirracista, o mesmo se aplica aos homossexuais. Não basta não ser homofóbico. É preciso, como nunca, ser contra qualquer manifestação de preconceito que ponha em risco a integridade física, moral e a vida da população gay. Os negros, as mulheres, os homossexuais podem caminhar em direção à compreensão de que não querem ser aceitos pela sociedade tal qual ela é. Querem modificar radicalmente o mundo em que vivem. Antes disso, jamais serão aceitos e correrão o risco de serem agredidos, atacados ou mortos por alguém que, em seguida, peça desculpas.