Alexandre Ribondi –
Cada século, ao longo da história, tem personalidade própria e histórias que contribuem para que seja traçado o seu perfil. Historiadores gostam de dar o palpite de que o Século XX começou com o naufrágio do navio Titanic, em 1912, o que causou a morte de cerca de 1.500 pessoas e teria inaugurado a temporada da desilusão: o inafundável havia afundado e a tecnologia precisava ser aprimorada. Mas seis nos mais tarde, uma pandemia, batizada com o enganoso nome de Gripe Espanhola, aproveitou-se da I Guerra Mundial e espalhou-se pelo mundo, deixando 50 milhões de mortos.
No primeiro ano do Século XXI, o inimaginável: as Torres Gêmeas (na foto, abaixo), um dos símbolos do poder econômico da nação mais rica do mundo, plantadas em Nova Iorque, foram atacadas, com sucesso, por um grupo de terroristas. Resultado: 2.500 mortos, aproximadamente. Agora, estamos presos no meio da pandemia da Covid-19, sem previsão de fim e que tem colocado o mundo em compasso de espera - com a possível exceção dos arquipélagos Juan Fernández, no meio do Pacífico Sul, com seus 700 habitantes, e que é o lugar onde eu gostaria de estar vivendo agora.
Mas por que o mundo se lembra do naufrágio, contado por livros e filmes de sucesso, e raramente se refere à Gripe Espanhola? Será isso também que acontecerá ao Século XXI: todos se recordarão, para sempre, do horror do ataque às Torres Gêmeas e citarão, com brevidade, o flagelo pestilento provocado pelo coronavírus?
O Titanic, com capacidade para 2.500 passageiros e 900 tripulantes, pesava 40 mil toneladas e dispunha de todo o conforto do mundo moderno: elevadores elétricos, sauna, spa, quadras de esporte, restaurantes luxuosos - e era considerado o maior transatlântico do seu tempo.
O World Trade Center, de uso puramente comercial, tinha, com as suas duas torres, 220 andares e 198 elevadores – e era o mais alto edifício do Ocidente. Tanto o navio quanto o prédio foram construídos para comemorar a força incontestável do acúmulo de capital, a inegável imponência dos riquíssimos e a engenhosidade de um mundo competitivo.
Já no momento do naufrágio, a tripulação do Titanic mostrou a força dos privilégios: os passageiros de primeira classe tinham empregados do navio que os ajudavam a se vestir e levar suas malas para os botes salva-vidas. Os passageiros de segunda classe recebiam coletes e o aviso de os usarem. Já os da terceira classe, recebiam, aos berros, a ordem de irem todos para o convés - sem colete, sem barcos.
Mas o Titanic ensinou a construir embarcações mais seguras e fortes, capazes de atravessar os mares e os céus com segurança, a salvo de intempéries. Um bom produto sempre garante uma melhor venda. O World Trade Center também serviu para que fossem corrigidas falhas no controle aéreo em todo o mundo e, muito provavelmente, se você embarcar hoje num teco-teco para os arquipélagos Juan Fernández, terá que mostrar que não está armado nem que oferece risco à integridade da aeronave. Além disso, as Torres Gêmeas são lembradas sempre que se tornam necessários argumentos que justifiquem ataques estadunidenses ao Oriente e seus terroristas de camisão e keffieyeh.
As pandemias, de 1918 e de 2019, têm outro cenário. Não há, por exemplo, lucro com o seu tratamento. Pelo contrário, pode dar prejuízo. O ministro brasileiro da Saúde, Nelson Teich, deu uma declaração para acalmar a economia, e não os pacientes da pandemia: “Se você se prepara demais, se estrutura demais, e amanhã sai um tratamento, você fez um investimento enorme desnecessário”. O presidente Bolsonaro, no seu afã de reabrir o comércio e as escolas, quer dar satisfação às regras do mercado e não à saúde brasileira.
O mundo aprendeu muito pouco com a Gripe Espanhola. Em 1918, o mundo desviava muito dinheiro, recursos públicos vitais que eram desviados para a compra de armamento, em nome da segurança nacional. Esse quadro ainda se mantém, como também sabemos que a saúde pública em 2020 é quase tão precária quando há um século e que somente uma classe média privilegiada e os ricos têm acesso a médicos.
Em 1919 a Gripe Espanhola, depois de sair da Europa e da Ásia e chegar ao Brasil, matou nas favelas e nas áreas urbanas mais pobres, onde a população, sem acesso à higiene, carecia de informação, de educação e de comida - tudo isso contribuía para que o vírus se encontrasse em terreno fértil.
O mundo continua relativamente o mesmo 100 anos depois. Morreremos não só pelo flagelo do vírus, mas também porque grande parte da população brasileira e mundial é desprezada pelo Estado, não é vista como merecedora de cuidados e de salvação. Se buscarmos ganhos apenas financeiros com cada hospital, cada vacina, cada enterro, e se não permitirmos que o vírus entre em nossas almas, com valores que vão além da economia e do lucro, corremos o risco de sairmos da pandemia com a mesma humanidade cruel e assassina. Serve até mesmo para lembrar que, na língua japonesa, os caracteres que designam “ser humano” têm o som premonitório de uma praga: “nin-guém”.