Alexandre Ribondi –
Uma substância orgânica, que não é um ser vivo, desprovido de metabolismo independente mas capaz de transmitir doenças — algumas letais - está alterando o mundo e o que sempre acreditamos o que ele seja. Para muitos, essa alteração é temporária e tudo voltará ao normal assim que a ciência, ou Deus, encontrarem o remédio. Para outros, no entanto, nada será como antes. Nesse sentido, essa substância orgânica, fotogênica e graciosa, está servindo, também, para que pensemos como o mundo deverá ser.
É aí que entra em cena o oportuno Sopa de Wuhan, coletânea de 15 textos (clique aqui e leia em pdf) contemporâneos sobre a Covid-19, lançado pela ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio). Trata-se de uma iniciativa editorial com a ideia de perdurar durante toda a quarentena como ponto de fuga criativo diante da paranoia, da infodemia e do isolamento social como proteção de um inimigo que não se vê.
Sopa de Wuhan reúne a produção publicada no período que vai de 26 de fevereiro a 28 de março de 2020. São textos filosóficos, jornalísticos ou literários recentíssimos, assinados por pensadores europeus, norte americanos, coreanos e sul americanos (Chile e a nossa vizinha Bolívia). Essa coletânea visa ao futuro da nossa sociedade, com indagações e sonhos de como será o mundo em que viveremos depois da passagem do coronavírus em nossos corpos e nossas almas.
O mundo está em estado de choque e teme o pior. A Europa receia, por exemplo, que a União Europeia (UE) não resista ao golpe e que os sentimentos nacionalistas e segregacionistas aflorem nos países que compõem o bloco. Assim, há quem sonhe com a necessidade urgente de criar uma nova mentalidade para a UE, onde o compromisso entre as nações deixe de ser retórica e passe a ser instrumento de uso permanente. Os países mais endividados, como Itália, Grécia, Portugal, Espanha, sabem que dependem da cooperação e que o caminho para a recuperação econômica e social será árduo caso tenham que pagar juros exorbitantes sobre os empréstimos que receberem. Se isso acontecer, será uma crise econômica sobre a crise sanitária.
É também preocupante o futuro do globo terrestre e o abuso que tem sofrido sistematicamente de um modelo econômico que busca apenas o lucro, a qualquer custo, como se o planeta fosse uma cadela usada para parir filhotes lucrativos em série. Quando a cadela-mãe se esgota, ela é descartada - o que não pode acontecer com a Terra.
Foi necessária uma catástrofe para repensar o mundo. Essa catástrofe tem também permitido que os brasileiros conheçam o egoísmo, a desonestidade e a ganância de muitos dos seus conterrâneos. Uma das situações que saltam às vistas são os chamados estados de exceção que, para alguns dos autores de Sopa de Wuhan, podem ser questionados em seu verdadeiro significado. Para o filósofo italiano Giorgio Agamben, “existe uma tendência crescente de utilizar o estado de exceção como paradigma normal de governo”, que se utiliza de “uma verdadeira militarização de municípios e zonas em que se desconhece o motivo de transmissão de ao menos uma pessoa”.
Interessantíssimo é o texto do esloveno Slavoj Zizek. Com o título de “O coronavírus é um golpe no capitalismo no estilo Bill Kill”, ele se refere, de maneira clara, ao retorno do animismo capitalista, que trata fenômenos como o mercado ou o capital financeiro como entidades vivas. Para ele, é sintomático que, no lugar de se preocupar com os mortos e como os que morrerão, a grande imprensa anuncie que “o mercado anda nervoso”. Cita sintomas da pandemia que prejudicam o mundo capitalista: milhares de passageiros presos em cruzeiros. A produção automobilística também se vê ameaçada, já que o transporte individual tem que ser substituído. E conclui afirmando que se designamos como comunistas todos aqueles que são conscientes de que, para salvar nossas liberdades, são necessárias mudanças radicais agora que o capitalismo se aproxima de uma crise, então o futuro pode ser comunista.
“O coronavírus é a eliminação do espaço mais vital, mais democrático e mais importante de nossas vidas que é a rua, esse “exterior” que virtualmente não devemos atravessar e que, em muitos casos, era o único espaço que nos restava”. É assim que sintetiza o que estamos vivendo a feminista radical boliviana Maria Galindo (na foto, abaixo). Seguindo essa mesma lógica, ela afirma que a pandemia é o holocausto do século XXI, devido às pessoas que morreram e às que virão a morrer, sacrificadas pela doença e pelos sistemas de saúde que decidem que há pessoas que merecem viver e outras que podem morrer.
Essa classificação que define os que vivem e os que morrem é também tema do texto de Paul Preciado (na foto, abaixo), o filósofo espanhol transgênero. Num texto tenso, perspicaz e muito inteligente, ele explica que “comunidade e imunidade têm a mesma raiz latina munus, o tributo que se devia pagar para fazer parte de uma comunidade. Os privilegiados, dispensados do pagamento, eram os imunes. Dessa forma, a comunidade exige também uma hierarquia entre aqueles corpos isentos de tributos (os imunes) e aqueles que a comunidade percebe como perigosos, que serão excluídos num ato de proteção imunológica. Eis aí o grande paradoxo: todo ato de proteção implica uma definição da comunidade segundo a qual ela dará a si mesma a autoridade para sacrificar outras vidas em benefício da sua soberania. O estado de exceção é a normalização deste paradoxo insuportável.