"A vida é de quem se atreve a viver".


Marcelo Pires: "Atual crise hídrica é uma questão de educação e gestão ambiental".
Racionamento de água no DF é branco, elitista e classista

Marcelo Pires Mendonça (*) -

No ano de 2000 a guerra da água em Cochabamba, terceira maior cidade boliviana, nos deixou uma importante lição: somente o povo organizado nas ruas pode barrar medidas governamentais que contrariam os interesses e causam prejuízos à sociedade.

Num feito inédito, a população do campo e da cidade unidas conseguiram a revogação da lei que privatizava a água em seu país, contrariando a recomendação do Banco Mundial. Estava posto ali o caráter estratégico dos recursos naturais, em especial a água, para a América Latina e para o mundo, sob a égide do capitalismo privatista.

Em 2014 testemunhamos a crise hídrica de São Paulo, negada pela cúpula do governo estadual (com a conivência da mídia hegemônica, omissa em divulgar os fatos) até atingir níveis insustentáveis.

Tal episódio suscitou duas questões: a  gestão desastrosa dos recursos hídricos pelo governo local à frente de uma das maiores economias do país e o caráter de classe do racionamento de água, que afetou desigualmente os moradores de periferias e dos bairros “nobres” da capital.

Além da opção por um modelo de política pública sem investimentos em infraestrutura e sem planejamento estratégico, saltaram aos olhos do país o arquétipo de “gestão da crise” adotado: a Sabesp realizou uma operação secreta de redução da pressão da água, com a justificativa de diminuir as perdas com vazamentos.

Na prática o resultado foi que milhares de pessoas passavam dias, até semanas sem água, principalmente os bairros altos das periferias e as localidades distantes dos reservatórios. Após meses negando a crise e diante das reclamações da população que sofria com os efeitos da medida arbitrária, a empresa admitiu a prática. A falta de transparência, a ausência de controle social e a gestão equivocada acenderam o alerta para todo o país.

Em Brasília, o ano de 2017 começa com o anúncio extemporâneo do GDF de um cronograma de racionamento de água.

Aqui, como em São Paulo há três anos, as mesmas duas questões se sobressaem: a gestão calamitosa dos recursos hídricos pelo governo local em plena capital do país e o caráter de classe do racionamento de água, cujo corte no fornecimento ocorrerá por rodízio e afetará precipuamente as regiões administrativas de menor poder aquisitivo do Distrito Federal.

Sob a justificativa de que apenas as regiões abastecidas pela bacia do Descoberto (que abrange 60% da população do DF) demandam esta medida, coincidentemente as regiões nobres de Brasília, abastecidas pelo reservatório de Santa Maria e outros córregos, serão poupadas deste incômodo.

Assim, Asas Sul e Norte, Lagos Sul e Norte, enfim, todas as regiões que englobam os setores de mansões e grandes condomínios (e que consomem, em média, o dobro de água do restante da população do DF) serão afetadas apenas pela redução da pressão da água, mas terão garantidos pelo GDF direitos fundamentais, como o de encher suas piscinas, regar suas gramas e lavar seus carros.
 
A atual crise hídrica nos coloca o desafio de refletir questões como educação e gestão ambiental, sustentabilidade e o uso adequado de recursos naturais do ponto de vista de classe.

O que não é debatido pela mídia com relação ao problema da sustentabilidade ambiental é o fato de que 82% da nossa água é consumida pela agricultura em processos de irrigação, 10% é destinada à indústria e somente 8% de toda água é consumida pelas famílias, segundo dados da OMS.

No fim das contas, quem menos consome e paga as maiores tarifas de água é quem sofre as consequências de uma sociedade que não discute a questão ambiental na perspectiva de classe e sim na perspectiva individualista do capitalismo tão propalada pelos meios de comunicação: os maiores poluidores ambientais no mundo são as indústrias petroquímicas e de plástico, que jogam no meio ambiente toneladas de metais pesados, efluentes industriais e poluentes orgânicos persistentes (POP), a queima de combustíveis fosseis e as usinas termoelétricas, sendo responsáveis por 91% da poluição ambiental no mundo e por 86% do lixo do planeta.
 
Entretanto, a mídia hegemônica difunde o discurso da consciência ambiental individual, superdimensiona a coleta seletiva de lixo residencial, o banho cronometrado, a economia de água doméstica, o racionamento que afeta somente às famílias, quando na realidade as famílias produzem 7,5% do lixo no Brasil e a coleta seletiva residencial, por exemplo, tem um impacto praticamente zero na preservação do meio ambiente, considerando que 3% (de 7,5% que é produzido) do lixo doméstico é reciclado....

E enquanto a sociedade está distraída separando o lixo da sua casa não tem ninguém pressionando empresas e governos por práticas industriais mais sustentáveis e eficazes ou por uma legislação e uma fiscalização mais rígidas que garantam de forma efetiva a preservação ambiental.
 
Pari Passu, aqui no Distrito Federal, a população das regiões administrativas com menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), a exemplo de Santa Maria, Ceilândia e Samambaia terão, oficialmente, um dia de racionamento com dois dias de religamento e três de abastecimento normal.

Na prática observamos inúmeras denúncias de casos de falta de fornecimento nestas localidades uma semana antes do racionamento oficial, reclamações acerca de relógios de medição que registraram cobrança no período do corte e de localidades nas quais, passado o período previsto para reabastecimento, a população seguia sem acesso à água.

Há também, no DF, os casos de restrição estrutural de acesso à água em regiões administrativas como a Fercal, que apresenta um dos maiores contingentes populacional de negros e um dos menores índices de renda, na qual parte da população sequer integra a rede oficial de abastecimento e recebe água de poços artesianos, cuja qualidade é considerada salobra.

Mais uma vez, as variáveis de raça e classe se imiscuem para aprofundar as desigualdades estruturais da sociedade.

Enquanto isso, as quatro regiões administrativas com maior IDH e menores contingentes populacionais de negros - Lago Norte, Sudoeste/Octogonal, Lago Sul e Plano Piloto – seguem imunes ao racionamento.

O banho de piscina está garantido nos setores de mansões, mas as regiões mais populosas e mais carentes nem direito ao banho têm.

Infelizmente, acompanhando o racionamento, persevera o discurso atomista e liberal do capitalismo de que "precisamos fazer a nossa parte".

Mas na realidade, se a nossa parte não compensa o dano industrial proporcionalmente muito maior do que podemos reparar, então na verdade a "nossa parte" favorece muito mais à nossa consciência, à manutenção do status quo e das políticas públicas erráticas do que ao meio ambiente.

Por isso a sociedade precisa assumir o compromisso histórico de construir a luta pela sustentabilidade ambiental e em defesa dos recursos naturais com consciência de classe e controle social, problematizando os reflexos da desigualdade social, de raça e de classe no acesso a bens e recursos essenciais.

O racionamento deve ser proporcional ao consumo e não inversamente proporcional ao nível de renda.
__________________
(*) Marcelo Pires Mendonça é formado em História e Geografia, professor da Rede Pública do Distrito Federal.

Você não tem direito de postar comentários

Destaques

Mais Artigos