Hiaman Santos e Julia Coury (*) –
A luz apagou. Com o fim do Auxílio Emergencial, milhões de brasileiros encontram-se sem perspectiva. O Brasil passa atualmente pelo que, decerto, se desenha como o pior momento da pandemia de Covid-19 desde o primeiro caso de infecção pelo SARS-Cov-2 confirmado no país em fevereiro de 2020. A falta de oxigênio em Manaus gerou terror e perplexidade na população brasileira, além de marcar mais um capítulo trágico desta calamidade. No dia 30 de janeiro de 2021, o país registrou uma média móvel de 1071 óbitos, a mais alta desde julho de 2020. Este é o indicativo de que a emergência sanitária ainda está longe de ser contida. Suas consequências tampouco se restringem ao âmbito da saúde pública.
A pátria amada torna-se mãe gentil
O Auxílio Emergencial foi a principal medida adotada para conter as consequências econômicas e sociais da pandemia.
Desenhado pelo Congresso após intensa pressão da sociedade, o Auxílio previu o pagamento de R$ 600 mensais à parcela mais vulnerável da população - trabalhadores informais, desempregados, microempreendedores individuais (MEIs) e trabalhadores cuja renda mensal fosse de meio salário mínimo ou cujas famílias vivessem com até três salários mínimos. Para mulheres chefes de família monoparental, o benefício chegou a ser de R$ 1.200. O número de beneficiários, em setembro de 2020, foi de 67,7 milhões de brasileiros.
Prorrogação - Inicialmente, o auxílio seria pago durante os meses de abril e junho, mas foi prorrogado por mais dois meses (agosto e setembro). Para outubro, novembro e dezembro, foi instituído o Auxílio Emergencial Residual: o valor da parcela foi reduzido para R$ 300. Mães responsáveis pelo sustento familiar teriam o direito de receber até duas cotas. Os últimos pagamentos estavam previstos até o último 27 de janeiro.
Importante ressaltar que a proposta inicial do Ministério da Economia previa o pagamento de R$ 200. O Governo Federal apadrinhou a concessão do benefício somente quando percebeu as potencialidades de ganho político. De fato, a aprovação do presidente da República atingiu seu pico entre agosto e dezembro com a continuidade do auxílio, apesar de uma clara estratégia de propagação do vírus por meio do negacionismo da gravidade da pandemia e de seus efeitos deletérios na economia; demissão de ministros da Saúde e falta de uma coordenação estratégica nacional; além da disseminação de notícias falsas, incluída a aposta em medicamentos sem comprovação científica de eficácia.
Impactos - Já em maio de 2020, os impactos do auxílio emergencial para minorar a crise econômica podiam ser sentidos, segundo o Ipea. Em dezembro, o órgão revisou a expectativa de retração econômica em 2020 de -6% para -4,3%, para a qual pesou a cobertura de renda aos mais vulneráveis. A pandemia atingiu o país na esteira da mais lenta recuperação econômica depois da retração de quase -7% entre 2015-16.
Em meio a uma combinação de instabilidade política com catástrofe sanitária e uma economia já cambaleante, o número de famílias em extrema pobreza cadastradas no CadÚnico (Cadastro Único para programas sociais do governo federal) superou a casa de 14 milhões e alcançou o maior número desde o final de 2014. De acordo com o Ministério da Cidadania, esse total de famílias equivale a cerca de 39,9 milhões de pessoas na miséria no Brasil. O número é chocante e chega a ser equivalente a cerca de 19% da população brasileira.
Os frutos da gentileza
Em março de 2020, foi reconhecido o estado de calamidade pública. Durante a vigência do Decreto Legislativo, houve o abandono do teto de gastos, da meta fiscal e da regra de ouro. Dito de outro modo, as regras do orçamento público foram flexibilizadas para dar conta dos gastos necessários para conter a pandemia com efeitos até 31 de dezembro de 2020.
O gasto previsto exclusivamente com o Auxílio Emergencial era de R$ 322 bilhões até dezembro de 2020. Até aquele mesmo mês, haviam sido pagos cerca de R$ 293,1 bilhões com o Auxílio Emergencial e Emergencial Residual. A título de comparação, o custo do Bolsa Família é de cerca de R$ 32 bilhões por ano. Pode-se afirmar que o Auxílio foi o maior programa de transferência de renda da história recente do Brasil, na medida em que o custo mensal do programa correspondeu, aproximadamente, ao custo anual do Bolsa Família - criado em 2003 e principal programa de transferência de renda do país desde então.
Assim, a concessão do auxílio emergencial teve efeitos inesperados e mesmo paradoxais.
Apesar de uma crise sem precedentes e de escala mundial, o número de pobres caiu 13,1 milhões entre 2019 e julho de 2020, segundo a FGV. O estudo da FGV considera pobres as pessoas que recebem no máximo meio salário mínimo (R$ 522,50).
Pobreza - De fato, os níveis de pobreza caíram para os “menores patamares da história”, segundo a economista Laura Carvalho. O sociólogo Rogério Barbosa afirmou que houve ganhos para os 40% mais pobres, recuperando uma perda de renda observada desde 2014. Ainda de acordo com os cálculos de Barbosa, o índice de pobreza caiu de 18,7% em 2019 para 11% em 2020. Desta vez, entende-se pobreza como a situação de quem recebe até um terço do salário mínimo (R$ 348).
Desigualdade - Não é exagero afirmar que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Pelo menos por um brevíssimo período, a desigualdade brutal brasileira também diminuiu. Os cálculos do sociólogo Rogério Barbosa indicam uma baixa histórica do índice de Gini, que mede desigualdade de renda. Este indicador caiu de 0,543 em 2019 para 0,492 em maio de 2020 - quanto mais próximo de “zero”, maior a igualdade na distribuição de renda. Para tanto pesaram, por um lado, o aumento da renda dos mais pobres por meio do pagamento do Auxílio Emergencial e, por outro, a perda de emprego e renda pelo miolo da pirâmide também. Sem auxílio, a desigualdade seria maior. Neste caso, o coeficiente de Gini seria de 0,569 (comparável à década de 1970).
Nassif-Pires e coautores (2020) encontraram a mesma tendência de redução da desigualdade, ainda que em patamares diferentes. Ao reduzir a pobreza para um nível histórico e compensar o aumento da desigualdade de renda do trabalho, que chegou a ser de 5%, o Auxílio produziu uma redução da desigualdade medida pelo índice de Gini de 0,67 para 0,56. Para os 50% mais pobres, o Auxílio mais do que compensou a perda de renda.
Esses avanços no combate à pobreza e desigualdade provavelmente ficarão restritos a um momento muito específico na história recente do Brasil. Sabe-se que as pandemias tendem a aumentar desigualdades. Pela temporariedade do benefício, o Auxílio postergou o aumento da desigualdade oriundo da crise sanitária causada pelo novo Coronavírus. Ainda assim, o avanço é admirável diante dos indicadores citados. Com a pandemia ainda em curso, o retorno de medidas de austeridade e de uma agenda liberal, a tendência é que a desigualdade no país volte a crescer.
Não veio a utopia. E tudo acabou. E tudo fugiu. E tudo mofou. Já diria Drummond.
Muda Brasil, muda de verdade!
No dia 28 de janeiro de 2021, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que, entre setembro e novembro de 2020, a taxa de desemprego alcançou 14,1%. Esse é o percentual mais alto para esse trimestre móvel desde 2012, quando a pesquisa da série histórica se iniciou. Estima-se que o total de desempregados no Brasil seja de 14 milhões. Ademais, segundo a PNAD-Covid, entre 20 e 26 de setembro de 2020, aproximadamente 15,3 milhões de pessoas não procuraram emprego por conta da pandemia. Em relação aos programas de crédito para empresas, existem críticas que o auxílio não chegou à ponta. O resultado foi lamentável, até julho de 2020, 716 mil empresas já tinham sido fechadas e não possuíam perspectiva de voltarem à atividade.
Foi nesse contexto de pandemia, desemprego e fim do Auxílio Emergencial que o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou na quinta-feira (4/2) a possibilidade de retorno do benefício social. Segundo Guedes, o auxílio seria concedido, no entanto, mediante o acionamento de “cláusulas necessárias” e, desta vez, estaria disponível para metade dos beneficiários que receberam o pagamento anteriormente. Uma das principais preocupações para a equipe econômica (e economistas em geral) é a questão da responsabilidade fiscal.
A temática fiscal tem sido usada como o principal argumento para não se levar adiante propostas como: extensão do Auxílio Emergencial Residual, ampliação do Programa Bolsa Família e criação de programas ainda mais amplos de garantia de renda. O que esses projetos têm em comum? Essencialmente, todos visam garantir uma receita mínima que assegure dignidade humana. Um deles é a Renda Básica, que, de acordo com uma pesquisa realizada pela Frente Parlamentar da Renda Básica, foi o tema de mais de 40 projetos de Lei ou PECs apresentadas pela Câmara ou pelo Senado em 2020.
Renda Básica - Para a economista Laura Carvalho, existem duas vias possíveis para desenvolver o projeto de Renda Básica sem que haja desequilíbrios orçamentários. A primeira opção seria remanejar recursos do orçamento destinados a outros itens, particularmente benefícios sociais (como Abono Salarial, Seguro Defeso, Salário-Família, entre outros), preservando, por ora, o modelo atual do teto de gastos. Uma segunda possibilidade seria “financiar a expansão das transferências por meio da tributação maior da renda dos mais ricos”. Esta última demandaria uma modificação na regulação do Teto de Gastos, já que uma maior arrecadação de impostos não criaria espaço adicional dentro do desenho atual já sufocado com os gastos correntes. Os estudos desenvolvidos por Laura Carvalho indicam que, com a elevação da alíquota efetiva de tributação do IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física) dos 20% mais ricos, passível de aumento proporcional à renda, seria possível beneficiar os 30% ou até os 50% mais pobres com valores superiores ao Bolsa Família e para mais beneficiários, chegando a uma redução de 8,9% do Índice de Gini.
Outras propostas estão sobre a mesa. O pesquisador Sergei Soares defende a criação de um benefício a todas as famílias com crianças, como existe nos países ricos, sem aumentar o endividamento público. Para tanto, seriam fundidos o Bolsa Família, o abono salarial e o salário-família (para além da restrição das deduções para dependentes no imposto de renda). A proposta tramita no Congresso como uma PEC e, pelas pesquisas, pode levar a uma queda de 30% na pobreza infantil com um benefício universal, quase fiscalmente neutro, devido ao ganho de cobertura (os valores básicos seriam os mesmos dos benefícios do Bolsa).
Assim, o desenvolvimento e execução de programas voltados para a distribuição de uma renda universal proporciona base para a construção de políticas públicas de impacto intersetorial. De acordo com Monica de Bolle, a transversalidade e a universalidade são fundamentais para garantir cidadania e justiça social para todos. É primordial que a população nas margens da cidadania fadadas às estruturas de desigualdades: negros, pobres, mulheres, membros da comunidade LGBTQIA+, tenham seus direitos econômicos e sociais respeitados. A Renda Básica tem como uma de suas principais consequências trespassar essas imensas injustiças históricas e promover dignidade.
Brasil, para onde?
Sabe-se que os programas de transferência de renda no Brasil têm impacto substancial na redução da pobreza e desigualdade, além de dinamizarem a economia e a arrecadação estatal. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) o programa possui um efeito multiplicador, e a cada R$ 1 gasto com o programa (entorno de 0,4% PIB) 'gira' R$ 2,4 no consumo das famílias e adiciona R$ 1,78 no PIB (Ipea). O Bolsa Família esteve na vanguarda do combate à pobreza nos anos 2000. Ainda que hoje se saiba que a redução da desigualdade tenha sido menor do que antes se imaginava, houve um efeito positivo na elevação da renda da parcela mais pobre (para discussão aprofundada sobre a concentração de renda no topo no Brasil, ver Ferreira de Souza, 2016).
No contexto atual de uma calamidade pública (ainda que não reconhecida juridicamente, mas ainda válida no mundo real), os impactos do Auxílio Emergencial reforçam o papel do Estado na promoção do bem-estar social. Milhões saíram da pobreza por meio deste programa e há evidência de que a desigualdade diminuiu. Esta experiência, bem como a do Bolsa Família, dá sustentação às propostas de desenho de uma renda básica que possa ser fiscalmente responsável e garantir uma vida digna a milhões de brasileiros.
Nos parece que está aí um dos remédios, quiçá o principal, para as mazelas sociais que abundam na sociedade brasileira há tempos. Não é aceitável que uma parte substancial da população viva ao deus-dará. Dito de outro modo, não é concebível que 40 milhões de brasileiros subsistam! Somente existe uma direção de marcha, Brasil. Rumo a um projeto de país que supere as desigualdades brutais e elimine a miséria.
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(*) Hiaman Santos, Internacionalista pela Universidade de São Paulo e finalista do Programa Trainee de Gestão Pública do Vetor Brasil.
Julia Coury, Internacionalista pela Universidade de São Paulo, consultora de Relações Governamentais e articuladora política do site Elas No Poder.
(As análises e opiniões aqui contidas dizem respeito aos autores e não representam o posicionamento institucional das organizações a que pertencem).