Verenilde Pereira –
Início da tentativa de escrever sobre orquídeas, o "homem comum", o jornalista "gagá", as flores desconhecidas, nossas mortes e um mínimo de Hannah Arendt.
Apesar de tudo ainda existe, sim, uma imensidão de azul sobre nossas cabeças. Uma beleza tão densa que às vezes chega a ser assustadora. Choveu muito nas últimas semanas em Brasília, resta muito verde - há umidade nas árvores, nos arbustos, nos galhos e folhas. Estouram begônias, orquídeas, papoulas, as onze horas, margaridas e tantas flores desconhecidas.
O mundo parece restaurado em áreas do Plano Piloto. Em alguns momentos os carros deslizam, obedecem a sinais e faixas de pedestres, há uma solenidade no ar como se nada do mundo estivesse danificado.
Tudo diferente de tantas cidades amazônicas, região que nunca deixou de escorrer em mim, às vezes de forma voluptuosa como alguns rios, às vezes de forma mais amena. Mas Brasília é a cidade onde encontrei quem me ajudasse a sustentar a vida - e isso não é pouca coisa. Me salvei da juíza que, aliás, basta um clique aqui para eu ver seu rosto escorrendo na tela, com seus colares e jóias falsas, sua opulência material. Temo rever seu perfil. Lembro da imagem postada do presidente, logo após a posse, em uma viagem ao nordeste (Bahia, se me lembro), onde ele aparece ao lado de um tanque de roupas para lavar. Ela escreve ao lado que o ato (forjado) é uma prova de que o presidente não é machista. Hábil em torturar, ela talvez nem tenha ideia das desgraças capaz de produzir. Mas existe a natureza viçosa.
Existe o lago na esquina onde se pode chorar à vontade antes do sol nascer, ou quando ele vai indo embora. Chorar pelos rostos que nunca mais serão tocados, pelos que sumiram entre os quase dois mil mortos diários durante esses últimos dias. Afinal, as gotas somem nas águas ou nos finos pingos de chuva. O mundo novamente se restaura. Mas continua o jogo apreensivo de quando se sonha mas a realidade vem à tona com o barulho do celular e anuncia os que a partir de então, provocaram a imensa falta. Ou quando nos chega a voz tão digna e corajosa de cientistas como Margareth Dalcomo anunciando as possibilidades de um triste mês de março.
Ou Miguel Nicolelis, tão honesto e sábio, anunciando como o Brasil, com o uso criminoso que se faz do vírus, ameaça espalhar o mal para o mundo com as novas e fortes cepas, ainda mais letais. É possível ouvir a imensa e incansável voz de Natália Pasternak e seu "porra! máscara é só um pedaço de pano na cara, afinal, qual a desculpa para não usar"? Medo de ligar o celular e sentir o luto dos moradores do Japiim, meu bairro em Manaus, com a morte da médica ELIANA VITORINO SHERAMM, que atendia a comunidade com seu alerta a favor da ciência, as informações e o cuidado como atendia seus pacientes. Mas morreu em consequência do vírus.
Quando mortes assim acontecem, em lugares como o Japiim, nas raras etapas em que a população é tratada com dignidade, é como roubar das pessoas um eixo que conduzia fortemente suas vidas. Conheço bem o Japiim onde muitos votaram no genocida. Alerto que o resultado de uma eleição não é o único motivo para explicar a complexidade daquela região, mas este é outro longo e difícil assunto. Sinto náuseas quando leio que a população de lá merece os assassinatos por asfixia pelos votos ao genocida.
A questão não é simples mas a estupidez generalizada não permite essa percepção, talvez eu escreva sobre isso nas madrugadas de um outro sábado. Enfim, falávamos sobre o lago ali na esquina e o lirismo existente em certas partes do mundo. O que não impede que, novamente, surja à sua frente o senhor com seu terno impecável, os sapatos perfeitamente engraxados, a barba branca bem aparada, os cabelos bem cuidados, e ainda carregando uma tragédia pessoal que não alterou o tom e a firmeza de sua voz nacionalmente conhecida. Antes da epidemia o encontrei rapidamente.
Devo ter olhado para ele com alguma insistência porque tentava relacionar a pessoa com o que viria acontecer. Vaidoso, ele percebeu que estava sendo reconhecido, talvez esperasse o pedido de autógrafo como já vi acontecer. Não fossem as características de alguém da classe mais favorecida, ou por ser uma celebridade, um jornalista reconhecido, seria mais um HOMEM COMUM. Alguém que foi chamado de "gagá" pela jornalista Juliana Morrone. Adjetivo que eu não usaria. Nem todo "gagá" serve para fortalecer ou ser porta-voz de alguém que se autodenuncia, aliás, que admite ser um estuprador quando diz que não estupraria uma deputada por ela ser feia.
Apesar do tempo que se impõe na vida de todos, esse senhor demonstrou muita virilidade nos braços, nas mãos, na entonação da voz, um tanto enrouquecida, quando criticou os colegas jornalistas que alertavam para o perigoso uso da cloroquina e os custos de um produto não comprovado cientificamente, apesar das milhares de toneladas fabricadas pelo Exército.
Indignado e louvando seu ídolo genocida, que recentemente havia se recuperado do vírus, ele questionou e anunciou entusiasmado: como duvidar da eficácia da cloroquina se o próprio presidente "é a comprovação CIENTÍFICA (sic) de que a cloroquina dá certo?". Isso significa apenas ser "gagá"? Antes da pandemia ele poderia ser visto aqui perto, caminhando com seus ombros já curvados, num local onde agora caem abacates, limão, pitangas. Seria apenas um HOMEM COMUM.
Há sutilezas na produção do horror. Há perplexidades. Senti isso quando vi, de longe, pela primeira e única vez, o ministro Pazuello, logo que assumiu o ministério da Saúde. Vi seu perfil, suas características físicas a mim tão comum, de homem do Norte. Notei sua roupa desconfortável, imaginei o menino que deve ter sido, usando a farda pesada e grossa do Colégio Militar de Manaus, naquele calor de quase 40 graus. Sei de sua voz potente mas incapaz de esconder as mentiras que profere e depois tenta desmentir para logo depois mentir novamente.
As sequências de atitudes subservientes entristecem, envergonham. Mas para ele tudo parece ser um mérito. Quem não lembra do encontro que teve, durante sua convalescença (também pegou o vírus) com seu patrão genocida? Mesmo depois de desmentido e humilhado publicamente no caso da compra da vacina chinesa, ele aparece com sua camiseta amarela e a voz estridente anunciando "Senhores, é simples assim: um manda, outro obedece".
Havia pessoas morrendo asfixiadas em Manaus em conformidade a uma política oficial de extermínio. Mas o patrão responde que ele é "um dos melhores ministros da Saúde" do país.
Difícil não pensar em Hannah Arendt quando em abril de 1961, como repórter da revista The New Yorker ela foi fazer a cobertura do julgamento de Adolf Eichmann, um réu nazista, oficial da Gestapo, que havia organizado a exportação de milhares de pessoas para os campos de extermínio.
Como a maioria de centenas de jornalistas do mundo inteiro que ali estavam e esperavam encontrar alguém capaz de demonstrar a monstruosidade que fora capaz de produzir, ou alguém cruel e arrependido, ali estava um HOMEM COMUM, embora dotado de uma espantosa incapacidade de refletir, de pensar. Coincidências: Eichmann era oriundo da classe média. Havia sido um aluno medíocre, chegou a ser tenente mas era considerado inferior entre seus colegas. Desrespeitado e ambicioso, fazia de tudo para subir na carreira e ter maiores proventos financeiros.
Hannah Arendt se surpreende de como, apesar dos atos monstruosos, seu agente era bastante ordinário: Nem demoníaco nem monstruoso, apesar de sobressair nele sua "OBEDIÊNCIA CADAVÉRICA" e os clichês que utilizava em seus discursos burocráticos que acobertavam a realidade da qual fazia parte. Seu vazio de pensamento, a rarefação de sua consciência, sua incapacidade de exercer um pensamento independente deu origem ao que Hannah Arendt definiu como a "banalidade do mal" que, não tem raiz em patologias ou no cristianismo, mas na aterrorizante IRREFLEXÃO. Sem a pretensão de estabelecer conexões exatas com o holocausto e os HOMENS COMUNS que o produziram, mas também sem condição de não fazer um paralelo.
Lembro dos provavelmente mais de 260 mil mortos no Brasil e na possibilidade, segundo cientistas, de pelo menos três mil mortos diários nas próxima semanas. O país tem uma população de pelo menos 210 milhões pessoas. Precisamos chegar aos seis milhões organizados pelo prestativo e obediente Eichmann que disse ser capaz de mandar para as câmaras de gás até seu pai, se isso lhe fosse ordenado pelo nazista alemão? Por que deixamos que isso acontecesse? Está clareando, certamente o céu lá fora se arruma para surgir deslumbrante. Há homens e mulheres que desejam ardentemente entrar para a história, seja lá de qual maneira. Perplexidades. Flores desconhecidas e o medo de ligar o celular...
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OBS: Desculpem o texto longo. Ler é um ato de generosidade... a intenção é partilhar. Bom dia! Boa noite!