"A vida é de quem se atreve a viver".


David Harvey: “A força de trabalho há muito vem sendo socializada para se comportar como bons sujeitos neoliberais, o que significa culpar a si mesmos ou a Deus se algo der errado, mas jamais ousar sugerir que o capitalismo talvez venha a ser o problema”.
Um anticapitalista de quarentena

Guilherme Cadaval (*) –

Quando das primeiras notícias da detecção de um novo membro da família do coronavírus na província chinesa de Wuhan, o agora infame Sars-CoV-2, a primeira reação dos mercados foi, naturalmente, de queda. Temia-se uma interrupção nas cadeias de produção. Contudo, logo em seguida a este primeiro sobressalto, eles atingiram novos picos por um mês ou mais. Atinavam que o novo coronavírus seria apenas uma reprise da Sars de 2002, que foi rapidamente contida, e, por isso, não haveria motivo para pânico. 

Talvez seja este o movimento mais característico, mais próprio, disto a que chamamos, ou que ouvimos ser chamado, sempre tão enigmaticamente, com o nome de “mercado”. Se o bicho pega, ele se retrai, fica à espreita, aguardando, mas sua expectativa é sempre a de um retorno tão rápido quanto possível a uma pretensa normalidade.

O último livro do geógrafo britânico David Harvey, Anticapitalismo em tempos de pandemia: marxismo e ação coletiva, publicado pela Editora Boitempo, é justamente um esforço no sentido de evitar um retorno irrefletido ao “normal”, a fim de abrir espaço para um repensar de nossas estruturas institucionais.

De fato, o vírus pegou de surpresa, em quase todos os lugares, autoridades públicas e sistemas de saúde, os quais, imersos em quarenta anos de um banho-maria de políticas neoliberais, “deixaram o público totalmente exposto e mal preparado para enfrentar uma crise de saúde pública desse calibre”, e isso apesar de “sustos anteriores como a Sars e o ebola terem fornecidos avisos abundantes e lições convincentes sobre o que seria necessário fazer”. 

Esta exposição, evidentemente, não é homogênea. Não estamos todos “no mesmo barco”. A pandemia demonstra muito claramente o seu recorte de classe, gênero e raça, uma vez que as pessoas mais vulneráveis, a classe trabalhadora contemporânea – aquela que tem de escolher entre ficar em casa e passar fome, ou sair para trabalhar e se expor a um vírus potencialmente fatal – é, em sua absoluta maioria, constituída por pobres, negros e mulheres. 

Segundo Harvey, essa força de trabalho “há muito vem sendo socializada para se comportar como bons sujeitos neoliberais, o que significa culpar a si mesmos ou a Deus se algo der errado, mas jamais ousar sugerir que o capitalismo talvez venha a ser o problema”. É claro, quem batalha diariamente pela sua sobrevivência e de sua família, não vai querer colocar o seu sustento em risco. Mas a pandemia contribui para tornar mais evidente a falácia da tese neoliberal de que toda a responsabilidade, pelo sucesso como pelo fracasso, recai sempre sobre o indivíduo, possibilitando enxergar uma transformação que não seja individual, mas coletiva. Em vez de dizer que queremos todos “voltar a trabalhar, recuperar aqueles empregos perdidos e restaurar tudo da forma que estava antes, talvez devêssemos dizer: porque não sair da crise criando uma ordem social inteiramente diferente?”.

A pandemia fornece um momento oportuno para refletir sobre alternativas ao status quo de um sistema capitalista que sempre esteve disposto a sacrificar vidas em prol da produtividade e do acúmulo ilimitado de riquezas. Curiosamente, a estrutura que possibilitaria um rearranjo radical desta ordem social, é a mesma que a sustenta. Porque não pegar a capacidade produtiva da sociedade burguesa – alta tecnologia, inteligência artificial, máquinas autônomas – e usa-la para construir uma sociedade na qual o capital não corra todo para o topo da pirâmide, e na qual todas as pessoas tenham garantidos os insumos básicos para a subsistência, como moradia, alimentação e saúde? Por que não?

Marx, em A guerra civil na França, afirma que as classes trabalhadoras “não têm nenhum ideal a realizar, mas sim querem libertar os elementos da nova sociedade dos quais a velha e agonizante sociedade burguesa está grávida”.

A revolução não se dá num único golpe, mas se desenrola numa série de processos históricos que transformam as circunstâncias e os homens. Estamos, não há dúvida, no meio de uma dessas transformações, cujas sequelas serão sentidas pelas próximas décadas.

David Harvey: “A pandemia contribui para tornar mais evidente a
falácia da tese neoliberal de que toda a
responsabilidade, pelo sucesso como pelo fracasso,
recai sempre sobre o indivíduo, possibilitando enxergar
ma transformação que não seja individual, mas coletiva.”

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(*) Guilherme Cadaval é formado em Filosofia pela UFRJ, onde concluiu mestrado e doutorado. É autor do livro Escrever a mágoa: um cruzamento entre Nietzsche e Derrida.

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