"A vida é de quem se atreve a viver".


Azulejos de Eduardo Negri foram retirados de um bloco na 314 Sul apesar dos apelos do Iphan. Ele fez parte da equipe de Oscar Niemeyer e é autor de cerca de 100 edifícios no Plano Piloto
Preservação e conservação do patrimônio cultural em Brasília

Luiz Philippe Torellly (*) –

Só há um meio eficaz de assegurar a defesa do patrimônio de arte e de história do país: é a educação popular” (Rodrigo Melo Franco de Andrade).

As cidades são por natureza ecléticas, submetidas a um tempo que é diverso ao da vida humana. Natural que as novas gerações deixem suas realizações e formas de expressão materializadas no espaço. Contudo, se não houver um regramento, um arcabouço definidor, uma concepção cultural, ocorre o que vemos em muitas cidades do Brasil e do mundo: a destruição das culturas ancestrais e da expressão material de um povo. Um passeio por cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, apenas para citar algumas, nos mostra o poder destruidor dos interesses econômicos, da especulação imobiliária, na utilização do instituto da propriedade privada. Todas as cidades citadas têm mais de 400 anos. Afora alguns edifícios e igrejas, pouco restou das gerações passadas. Uma catástrofe.

Por que gostamos de Paris, Viena, Roma, Lisboa? Porque encontramos manifestações arquitetônicas e urbanas de várias épocas, em uma conformação razoavelmente harmônica, que nos passa uma ideia de unidade, de conjunto, mesmo os edifícios não sendo de um mesmo estilo ou período histórico. Exemplares isolados de boa arquitetura, acabam perdidos em meio a uma miríade de edifícios construídos com intento especulativo, em que a arte e a cultura não têm lugar.

O que fez Lúcio Costa quando concebeu o Plano Piloto de Brasília? Pensou e desenhou uma cidade inteira, com suas diversas funções e atividades e suas famosas escalas: monumental, residencial, gregária e bucólica, cada qual com suas prerrogativas e finalidades. A passagem do tempo demonstrou que ele acertou muito mais do que errou. A cidade é hoje densamente arborizada e agradável à vista e aos sentidos. Um grande parque urbano. Há um ordenamento que facilita o desenrolar da vida cotidiana. É claro que tem problemas, afinal vivemos em um país onde a desigualdade e a segregação caracterizam a sociedade e as cidades.

De maneira geral, a par de algumas disfunções e usos inadequados o Plano Piloto está bem preservado. O reconhecimento do significado cultural e artístico de âmbito mundial veio com o título de Patrimônio da Humanidade concedido pela Unesco em 1987. Nenhuma outra cidade erigida no século XX é detentora de tal distinção. Em qualquer compêndio de Arquitetura e Urbanismo, em qualquer língua, Brasília figurará com destaque.

Recentes incidentes envolvendo a conservação das edificações, seus usos e funções, tiveram relevante caráter educativo. No primeiro caso, houve a proibição de que as crianças e seus aparatos corriqueiros, utilizassem os pilotis como espaço de recreação. No segundo, o motivo foi a substituição de azulejos de um bloco na SQS 314, de autoria do arquiteto Eduardo Negri, que fez parte da equipe de Oscar Niemeyer e é responsável pela arquitetura de cerca de 100 edifícios residenciais no Plano Piloto. Negri, como outros arquitetos do período modernista, tinha como princípio incorporar elementos artísticos aos seus projetos. Daí os painéis de azulejos, que tem na obra de Athos Bulcão sua expressão máxima.

Esses casos geraram polêmica, manifestações nas redes sociais e ampla divulgação na imprensa. Mesmo alertados pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de que deveriam restaurar os painéis, o síndico, o arquiteto responsável e a maioria dos moradores, optaram por substituir os azulejos. Cometeram um ilícito penal? Não. O tombamento de Brasília é de caráter urbanístico e das características gerais dos volumes, usos e atividades.

Não desrespeitaram a lei, mas foram responsáveis pela destruição de uma manifestação artística, que tem significado não apenas para os moradores, mas para toda a cidade na medida em que faz parte do cenário urbano. E mais, foram alertados pelas instituições públicas responsáveis pela preservação do patrimônio, do caráter significativo do bem em questão, mas mesmo assim insistiram em sua substituição, sem estudar alternativas.

Que lições podemos retirar desses episódios? Em primeiro lugar, cresce na sociedade local a consciência de que habitam e convivem em um espaço reconhecido como patrimônio cultural da humanidade. Que essa consciência precisa ser ampliada a ponto de transformar cada cidadão em “um cuidador” do patrimônio cultural. Que as práticas educativas sejam dirigidas a todos, crianças, jovens, síndicos, moradores, arquitetos e demais profissionais. Rodrigo Melo Franco de Andrade, homem sábio que era, já sabia da força da educação há mais de 80 anos atrás.
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(*) Luiz Philippe Torellly é arquiteto e urbanista.

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