"A vida é de quem se atreve a viver".


Rubem Braga, conhecedor das entranhas e mazelas do Rio, escreveu há 62 anos sua mais famosa crônica: “Ai de ti, Copacabana”
Ai de ti, Rio de Janeiro

Luiz Philippe Torelly (*) –

Sou carioca da gema. Não moro mais na "Cidade Maravilhosa", mas nunca deixei de frequentá-la. Das cidades que conheço é das mais bonitas, com sua mistura de mar, praias, montanhas, florestas e uma diversificada fauna e cultura urbana. Cidade símbolo do Brasil, reúne pessoas de todos os rincões.

Meus avós, cada um de uma região do país, se encontraram no Rio e cariocas se tornaram. Embora cindida e marcada pela exclusão e a violência crescente, nossa urbis possui recantos encantadores e paisagens de tirar o folego. Praias, o Jardim Botânico, a Quinta da Boa Vista, o Passeio Público, o Cristo e o Corcovado, o Pão de Açúcar, o Teatro Municipal nossa Opera tupiniquim, sua linda Baía que encantou tantos navegantes através dos séculos, o Mosteiro de São Bento, a Candelária, a Colombo talvez a mais linda confeitaria do mundo. Poderia encher muitas páginas com suas maravilhas, sem esquecer os bares de herança lusitana, lugares onde a alma melhor se revela.

Pelo que representa para a gente e a cultura brasileira, tudo o que ocorre no Rio, atinge a todos nós.

Na realidade se criaram duas cidades: uma branca, da praia e do asfalto, outra negra, dos morros e das favelas, dos subúrbios distantes. Iníquas, desiguais, uma olhando a outra de cima e percebendo tudo. Alguém já disse que um dia o morro ia descer. Então criaram uma linha invisível que separava as duas metades. Linha construída pela política da bica d'água, do pequeno favor, da dissimulação e da repressão e amedrontamento simultâneos. Lá pelos anos 60 a droga chegou e se instalou nos vazios que a política da desigualdade havia deixado. Depois vieram os pastores que também se tornaram políticos.

Algo havia mudado para não mudar nada, já dizia Tomaso Di Lampeduza.

A cidade praiana até tentou dissimular, mas o que fez foi relembrar os tempos lacerdistas quando jogavam os mendigos no Rio da Guarda. Uma imitação da solução final em pequena escala. Qualquer candidato com propostas de redução das desigualdades e propostas inclusivas, era taxado de comunista, bicha e maconheiro. Religião, clientelismo e milícia se uniram e dominaram. Bolsonaro teve 68% dos votos dos cariocas. Cinco ex-governadores foram presos. O desconhecido juiz justiceiro Witzel, o do tiro na "cabecinha", também foi eleito por massiva maioria.

Falar de um lugar que tanto amo é doloroso e difícil, por isso resolvi recorrer à literatura, muitas vezes premonitória. Rubem Braga, conhecedor de tuas entranhas e mazelas, escreveu há 62 anos sua mais famosa crônica: Ai de ti, Copacabana, que transcrevo a seguir:

1 - Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.

2 - Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.

3 - Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia.

4 - Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas.

5 - Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão.

6 - E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.

7 – E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska.

8 - Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum.

9 - Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão.

10 - Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação.

11 - Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência.

12 - Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei.

13 - Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.

14 - E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações.

15 - Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?

16 - Antes de te perder eu agravarei a tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.

17 - E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.

18 - E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas.

19 - Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.

20 - A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará.

21 – Assim, qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares.

22 - Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas jóias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana! (Rio, janeiro, 1958).


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(*) Luiz Philippe Torelly, arquiteto e urbanista.

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