"A vida é de quem se atreve a viver".


Reunião de cúpula dos BRICS – África do Sul, Rússia, China, Índia e Brasil – dia 14/11/2019, em Brasília (Foto: Alan Santos/PR)
BRICS: passado promissor ou futuro otimista?

Júlia Coury e Rafaela Santos -

Com a IV Jornada dos BRICS acontecendo essa semana na Universidade de São Paulo (USP), existe muita especulação acerca do bloco internacional, mas pouco se sabe sobre o atual “status” da organização. O grupo, fenômeno criado pelo Goldman Sachs, no qual Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul eram impulsionados pelo mercado que refletia mudanças profundas na estrutura da economia global, fazia as escolhas de políticas econômicas "certas" e atingia crescimentos econômicos vultosos.

Todavia, com as crises na economia global nos últimos anos, e crescimentos econômicos diminutos de alguns dos membros, a sigla passou a ser questionada pelo nível de importância no debate internacional. Existem dúvidas sobre as convergências e as divergências políticas e econômicas internas, sobre o objetivo de existência, sobre a atuação no sistema internacional e, o pior, sobre sua relevância e permanência perante os outros blocos.

Uma das principais colocações em relação ao grupo é a sua divergência identitária, cada país tem uma abordagem política e econômica interna, deixando em evidência uma dificuldade em entender a construção e o motivo da união no bloco. No Brasil, país que vem enfrentando polarização política e recessão econômica, a eleição do Presidente Jair Bolsonaro, político conservador de extrema direita, marca a nova direção tomada tanto no âmbito doméstico como externo. A sua agenda econômica é pautada pelo liberalismo econômico, com promessas de privatização de empresas estatais, atração de investimentos estrangeiros e fortalecimento do agronegócio. O presidente Bolsonaro é um defensor do bilateralismo, apesar de cobiçar entrar na OCDE, defende um total alinhamento do Brasil aos Estados Unidos e já criticou diversas vezes gestões passadas por priorizarem a agenda Sul-Sul.

Esse novo posicionamento foi recebido com espanto na África do Sul. As declarações do presidente Cyril Ramaphosa ressaltaram que o BRICS é uma família comprometida com o multilateralismo e com o benefício mútuo dos países membros. O presidente africano dirige o país desde 2018 e promete reerguer empresas estatais, buscar investimento externo e “desenvolver” a mineração, uma das principais fontes de renda da África do Sul, a primeira economia do continente africano. Para o país sul-africano, o apoio constante oferecido pelo BRICS às iniciativas empresariais nacionais foram fundamentais para sustentar os pilares de desenvolvimento do país.

Na Rússia, o resultado da última eleição presidencial aconteceu em 2018 e manteve Putin no poder. Desde que assumiu pela primeira vez a presidência, há 21 anos, a política externa de Putin tem sido pautada em dois objetivos: preservar a unidade do país e restaurar seu status como superpotência na arena internacional. No entanto, o subsequente declínio dos preços do petróleo, a guerra da Criméia e o isolamento da economia global enterraram qualquer esperança de aceleração de crescimento econômico. Ademais, Putin enfrenta outros problemas domésticos que afetam a reputação internacional russa, como a falta de proteção dos direitos de propriedade, do Estado de direito, da concorrência e do combate contra corrupção.

O desemprego está em níveis recordes na Índia, o rendimento de agricultores despencou e a produção industrial diminuiu. Além disso, o país lida com retórica nacionalista, polarização religiosa, uma grande quantidade de programas de bem estar social. O Primeiro ministro, Narendra Modi, não poupa esforços para fundir nacionalismo e desenvolvimentismo como políticas do governo.

Para a República Popular da China em 2013, desde que tomou posse como presidente, Xi Jinping realizou reformas para acabar com a corrupção sistêmica e garantir um desenvolvimento mais sustentável da economia chinesa. Os seus mais recentes projetos caracterizam a ascensão da China como potência global, demonstram o caráter mais expansionista de Xi Jinping com relação aos líderes chineses anteriores e posicionam Beijing no centro geoeconômico e político da região. No entanto, iniciativas chinesas podem enfraquecer o dinamismo do BRICS já que o “Belt and Road Initiative” (BRI) é considerado um potencial competidor com o projeto Russo, União Econômica Eurasiática, e diminuem a tradicional influência que a Rússia exerce na Ásia Central. Além disso, a Índia, que historicamente possui disputas territoriais com a China, vê a “Maritime Silk Road Initiative (MSRI)”, parte do BRI, como um fortalecimento naval dos chineses no Oceano Índico.

Nesse sentido, a política externa de cada membro pode desafiar a dinâmica e a convergência do bloco. A própria China e a Rússia podem ser vistas como revisionistas na arena internacional, cada uma, porém, com objetivos destoantes. O BRICS pode ser visto, na lógica de projeção externa chinesa, como um instrumento de execução do soft-power chinês. O uso dessa ferramenta cultural e econômica visa aumentar a influência política e econômica global chinesa ao exportar sua capacidade doméstica excedente; ao ser uma das principais fontes de Investimentos Externos Diretos (IEDs); ao promover a internacionalização do renminbi; e ao desejar expandir o número de membros com o BRICS Plus. Ao passo que para a Rússia, que tenta restaurar seu status como superpotência, o BRICS pode ser encarado como uma plataforma de discussão de temas relacionados à criação de uma ordem mundial multipolar e uma alternativa às instituições ocidentais.

Os outros membros, Brasil, Índia e África do Sul, entretanto, preocupam-se com os impactos econômicos domésticos originados pelo BRICS. O presidente brasileiro, apesar da retórica de valorização do alinhamento com os EUA em detrimento da China, posiciona-se de modo divergente e pragmático dentro do foro internacional. As perspectivas atuais da abordagem brasileira no BRICS não são pautadas na ideologia de alinhamento Sul-Sul, mas sim nas vantagens econômicas promovidas pelo bloco. Para a Índia, que busca crescimento econômico dirigido pelo investimento em infraestrutura, a dinâmica dos BRICS consiste no aprofundamento da cooperação econômica entre os membros. Assim, possui um forte interesse na manutenção do relacionamento com a China, apesar das disputas fronteiriças históricas. Com relação à África do Sul, a despeito de suas pequenas taxas de crescimento desde que ingressou no bloco, o BRICS é uma forma de atrair investimentos externos e de pressionar por mudanças no sistema global que sejam mais favoráveis ao seu desenvolvimento.

Nesse contexto, é possível perceber as grandes divergências ideológicas, políticas e econômicas entre os países membros. Questiona-se, ainda, a possibilidade de haver futuro relevante para o bloco. Em uma perspectiva de permanência do bloco, a criação do Banco dos BRICS, vista com ceticismo por muitos especialistas, assim como a manutenção dos encontros anuais e a aposta na criação de eventos acadêmicos sobre o tema, são tentativas de forte interação entre os países-membros. Uma outra perspectiva aponta o enfoque nos relacionamentos bilateral intra-BRICS, conforme observado na reunião da cúpula em Brasília no fim de 2019.

Assim, não parece fidedigno afirmar uma deteriorização dos laços internos de parceria entre os países do BRICS, mas sim uma transformação do grupo de um agrupamento político para um agrupamento financeiro.

Para vislumbrar um futuro otimista do bloco, será necessário transformar o principal fator de decisão, que antes era o alinhamento Sul-Sul, em atuações pragmáticas, sustentáveis e inovadoras, de modo a focar na criação de maiores oportunidades para o setor de negócios. O bloco carece de iniciativas concretas e relevantes, principalmente, que tragam benefícios diretos a suas populações, assim como promovam maior convergência política entre os membros, visto que os países enfrentam problemas domésticos e possuem planos de expansão na arena internacional divergentes. Portanto, a criação e o fortalecimento de acordos comerciais, internos e em bloco, e a intensificação da cooperação entre outras áreas, como a da saúde, a do meio ambiente e a da tecnologia, podem garantir a força política, econômica e sobrevivência do grupo.
________________
(*) Julia Coury, estudante de Relações Internacionais da USP, membro do Elas No Poder, Talento Politize e finalista do programa Talentos do Legislativo 2020. Rafaela Santos, estudante de Relações Internacionais na USP, mentora e professora voluntária de assuntos internacionais no Cursinho Popular Lima Barreto - Favela da Vila Prudente.

(Lembrando que as análises e opiniões aqui contidas dizem respeito às autoras e não representam o posicionamento institucional das organizações).

________________
Referências:

Agência Brasil. 2018. África Do Sul Diz Que Eventual Afastamento Do Brics Prejudicará Brasil. [online] Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2018-11/africa-do-sul-diz-que-eventual-afastamento-do-brics-prejudicara-brasil [último acesso em: 24 de Maio de 2020].

BEESON, M., & ZENG, J. 2018. The BRICS and global governance: China’s contradictory role. Third World Quarterly, 39, 1962–1978. doi:10.1080/01436597.2018. 1438186

BISWAS, S., 2019. Como O Primeiro-Ministro Reeleito Narendra Modi Reinventou A Política Na Índia. [online] BBC News Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48386137 [último acesso em: 24 de Maio de 2020].

BITTAR, B. and KAFRUNI, S. 2019. Mercado Livre Sul-Africano Está À Disposição Dos Brics. [online] Correio Braziliense. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2019/11/13/internas_economia,806207/mercado-livre-sul-africano-esta-a-disposicao-dos-brics.shtml [último acesso em: 24 de Maio de 2020].

CARMODY, Pádraig. 2019. South Africa in the Global Political Economy: The BRICS Connection. In: The Geography of South Africa, World Regional Geography Book Series. By  J. Knight, C. M. Rogerson [editors]. https://doi.org/10.1007/978-3-319-94974-1_24

DEUTSCHE, Welt. 2020. Cyril Ramaphosa. [online] Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/cyril-ramaphosa/t-44578566 [último acesso em: 24 de Maio de 2020].

DUTRA, L., 2019. Brics: Oportunidade Ou Perda De Tempo Para O Brasil?. [online] Estadão. Disponível em:  https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/brics-oportunidade-ou-perda-de-tempo-para-o-brasil/ [último acesso em: 24 de Maio de 2020].

FIERRO, Tonatiuh. 2019. Cambio y política exterior. La relación de Brasil con China en los albores del siglo XXI: de Lula a Bolsonaro. 10 Edición Simposio Electrónico internacional sobre Política China.

GAGLIONI, C., 2019. O Que Está Na Pauta Da Viagem De Bolsonaro À China. [online] Nexo Jornal. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/10/24/O-que-est%C3%A1-na-pauta-da-viagem-de-Bolsonaro-%C3%A0-China [último acesso em: 24 de Maio de 2020].

GURIYEV, Sergey. 2019. 20 Years of Vladimir Putin: The Transformation of the Economy. The Moscow Times.  Disponível em: https://www.themoscowtimes.com/2019/08/16/20-years-of-vladimir-putin-the-transformation-of-the-economy-a6685 [último acesso em: 02 de Junho de 2020].

HOOIJMAAIJERS, Bas. 2019. China, the BRICS, and the limitations of reshaping global economic governance, The Pacific Review. DOI: 10.1080/09512748.2019.1649298.

www.indiabrazilchamber.org 2019. O Papel Da Índia Nos BRICS. [online] Disponível em: https://www.indiabrazilchamber.org/post/o-papel-da-%C3%ADndia-nos-brics [último acesso em: 24 de Maio de 2020].

Itamaraty.gov.br. 2019. XI Cúpula Do BRICS – Declaração De Brasília. [online] Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/21083-declaracao-de-brasilia-11-cupula-do-brics [último acesso em: 24 de Maio de 2020].

JING, Gu and RENWICK, Neil.  2020. Contested partnership. In: China and India in BRICS. Routledge Handbook of China–India Relations. By Kanti Bajpai, Selina Ho, Manjari Chatterjee Miller [Editors].

NOVIKOV, Dmitry; SKRIBA, Andrei. 2019. The Evolution of Russian Strategy Towards BRICS, Strategic Analysis, 43:6, 585-596, DOI: 10.1080/09700161.2019.1672129.

PASSARINHO, N., 2020. 1 Ano De Governo Bolsonaro: 6 Momentos-Chave Que Revelam Guinada Na Política Externa Brasileira. [online] BBC

News Brasil. Disponível em:  https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50760533 [último acesso em: 24 de Maio de 2020]. Senado Federal. 2019. Especialistas Fazem Análise Crítica Da Participação

Do Brasil No Brics. [online] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/11/11/especialistas-fazem-analise-critica-da-participacao-do-brasil-no-brics [último acesso em: 24 de Maio de 2020].

TRENIN, Dmitry. 2019. 20 Years of Vladimir Putin: How Russian Foreign Policy Has Changed. Disponível em: https://www.themoscowtimes.com/2019/08/27/20-years-of-vladimir-putin-how-russian-foreign-policy-has-changed-a67043 [último acesso em: 02 de Junho de 2020].

VAN DER TOGT, Tony 2019. Is BRICS a useful framework for Russia’s global agenda? Disponível em: https://spectator.clingendael.org/en/publication/brics-useful-framework-russias-global-agenda  [último acesso em: 02 de Junho de 2020].

VIEIRA, V. 2019. Aos 18 Anos, Brics Perde Relevância. E Abre Espaço Aos Trics. [online] Nexo Jornal. Disponível em:  https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2019/Aos-18-anos-Brics-perde-relev%C3%A2ncia.-E-abre-espa%C3%A7o-aos-Trics [último acesso em: 24 de Maio de 2020].

WEIXING, Hu. 2019. Xi Jinping’s ‘Major Country Diplomacy’: The Role of Leadership in Foreign Policy Transformation, Journal of Contemporary China, 28:115, 1-14, DOI: 10.1080/10670564.2018.1497904.

Você não tem direito de postar comentários

Destaques

Mais Artigos