Guilherme Cadaval (*) –
Talvez a melhor definição para o que é um drone tenha sido dada por um ex-diretor da agência de segurança nacional norte-americana: “câmeras de vídeo voadoras, de alta resolução, armadas de mísseis”. Ela dá conta de colocar em evidência o caráter, ao mesmo tempo, vigilante, unilateral e letal destes “veículos aéreos de combate não tripulados”. De fato, como diz Grégoire Chamayou em Teoria do Drone, lançado em 2015 pela extinta Editora CosacNaify, qualquer máquina pilotada pode ser “dronizada” a partir do momento em que não há mais tripulação humana a bordo.
O drone pode parecer uma realidade distante para nós que habitamos território brasileiro. Embora devamos certamente recordar a viagem feita por Wilson Witzel, então governador recém-eleito do Rio de Janeiro, para Israel, a fim de ter acesso a drones com capacidade para disparar armas de fogo, como uma criança que vai à loja comprar brinquedos novos no natal. Mas basta ler alguns dos relatos da população civil de países do Oriente Médio, citados por Chamayou, para reparar que talvez esta não seja uma realidade tão distante: vive-se com a lembrança constante de uma morte iminente, pois os drones “estão sempre em cima de nós, e a gente não sabe nunca quando vão atacar”.
Um dos grandes argumentos de defensores desses veículos de combate não tripulados é que ele poupa as vidas de soldados e, por sua incrível precisão, quase não ceifa vidas civis. Desse modo, uma das maiores bandeiras dos militantes antiguerra – justamente a perda da vida de conterrâneos e de inocentes em guerras impopulares e sem sentido – estaria, de certa forma, neutralizada. Os drones permitem projetar poder sem, por outro lado, projetar nenhuma vulnerabilidade, o que desde sempre teria sido o pressuposto básico de toda guerra. Além do que, possuem a conveniência de reduzir o campo de batalha ao corpo do inimigo, e não mais a um território demasiado extenso, cuja ocupação e controle é sempre muito onerosa e complicada.
Como fica, contudo, a retórica do heroísmo que permeia o imaginário de nações beligerantes, especialmente a norte-americana? O drone seria, afinal, como coloca Chamayou, a “arma do covarde”. Imagem difícil de difundir em uma sociedade que está em grande medida fundada na coragem de homens valentes e heroicos que não hesitam na hora de arriscar a própria vida em defesa da liberdade. Como vender a imagem de um punhado de sujeitos em uma sala ar condicionada, em solo pátrio, observando, nas telas de seus computadores, uma situação que acontece a milhares de quilômetros de distância, e com cujo desfecho eles se comprometem, de maneira fatal, pelo simples apertar de um botão?
Esta já é a realidade da guerra contemporânea. A guerra do futuro, contudo, é um tanto quanto mais preocupante. Na medida em que esses drones não apenas disparam mísseis, mas também coletam uma quantidade enorme de dados, a investigação de potenciais suspeitos se dá através da sua movimentação no espaço, os lugares aonde vai, as pessoas que frequenta, os movimentos estranhos que porventura faça com seu corpo. A decisão de exterminar um alvo está, em diversos casos, baseada nos padrões de comportamento: trata-se de “ataques de assinatura” que são dirigidos a “indivíduos cuja identidade permanece desconhecida, mas cujo comportamento leva a supor, indica ou assina o pertencimento a uma ‘organização terrorista’”.
Se um sujeito pode ser considerado um “terrorista”, um elemento perigoso, apenas a partir da sua “assinatura”, dos rastros que deixa no espaço e que são observados e coletados por uma câmera voadora operando a centenas de quilômetros de distância acima de sua cabeça, é relativamente fácil antecipar que todo este processo estaria maduro para autonomização. Significa dizer que, futuramente, não haverá necessidade de um humano para tomar a decisão de tirar uma vida. A máquina tomará essa decisão, pois será devidamente programada para tal. Uma tal máquina – de fato, um robô – eliminaria todas as contingências, todos os riscos envolvidos em deixar uma decisão dessa natureza cair sob a alçada de humanos. As emoções e as paixões que perturbam o julgamento humano seriam retiradas da equação, e tudo o que restaria seriam matadores a sangue-frio que apenas aplicam as regras pelas quais foram programados.
Se esta situação parece retirar a possibilidade de que humanos cometam, movidos pelo medo, pela raiva, pela vingança ou frustração, crimes de guerra, uma vez que os robôs seriam programados segundo todos os princípios éticos e do direito internacional que rege o estado de guerra, esquece-se facilmente que eles também eliminariam uma imperfeição humana decisiva: a capacidade de insubmissão, de recusar-se a cumprir uma decisão baseado na sua própria consciência.
Seria o caso, então, de alterar fundamentalmente os roteiros de ficção científica, que há décadas nos fazem temer que algum dia os robôs tomariam o controle, e nos subjugariam. Afinal, o “perigo não é que os robôs comecem a desobedecer; é justo o inverso: que nunca desobedeçam”.
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(*) Guilherme Cadaval é formado em Filosofia pela UFRJ, onde concluiu mestrado e doutorado. É autor de “Escrever a mágoa: um cruzamento entre Nietzsche e Derrida”.