Luiz Philippe Torelly (*) –
Embora angustiado e triste, procuro escapar de nossa insólita realidade, para preservar a sanidade. Como já vivi tempos bem melhores, mergulho na memória para encontrar felicidade. Desde criança aprendi com meu pai, que essa palavra mágica quase sempre tem a ver com bares e restaurantes. E assim fiz a minha vida.
Quem mora há muito tempo em Brasília, com certeza já ouviu falar do Rosental, ex-cozinheiro do festeiro JK, tão simpático e mineiro como ele. Nosso chef que antes trabalhava no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, veio nos primórdios da capital para dar um tom brasileiro à cozinha do Palácio do Alvorada. Depois de sua passagem pelo governo tocou vários restaurantes, o último deles que levava seu nome, era na Vila Planalto e ele esteve à frente do negócio até sua morte em 2005.
O almoço de sábado sempre foi para mim o melhor acontecimento da semana. E o nosso restaurante oferecia um ambiente despojado, mas uma cozinha de primeira. Pode-se dizer que o cardápio era pan-brasileiro, tinha de tudo: rabada, dobradinha, feijoada, caruru, cozido, pato no tucupi, lombo com tutu, torresmo, cerveja gelada e uma boa pinga. A sadia boemia de Brasília frequentava o local especialmente nos finais de semana.
Além de cozinheiro e de ter um nome de hebreu, Rosental era babalaô. Às sextas se vestia de branco, andava sempre com umas guias e possuía um oratório bem eclético nos fundos do restaurante, onde tinha São Benedito, Santa Bárbara, Santa Efigênia, Sagrado Coração de Jesus, Iemanjá e tudo o mais.
Certo sábado, há uns 20 anos, rumamos eu e Ricardo Pedreira para lá. Outros amigos e amigas iam nos encontrar mais tarde. Como minha filha Bruna dizia, “a turma da pesada”. Iniciados os trabalhos, com o restaurante já cheio, emerge da cozinha o nosso personagem. Como de hábito veio conversar com os fregueses e esbanjar simpatia. Em nossa mesa demorou um pouco mais e, ao sair, me pediu que o acompanhasse. Fiquei cismado. Falei bobagem? Pendurei alguma conta e não paguei? Passando a mão em meu ombro, ele me conduziu até o seu oratório. Lá chegando, identificou os orixás e santos e orou. Ao final, tocou em minha barriga então já proeminente e disse: você precisa vir para o axé, você tem poder.
Voltei à mesa meio atônito, pois ele me fez a revelação em tom grave e solene. Àquela altura meus companheiros, todos bêbados, estavam curiosíssimos para saber o teor da conversa. Eu estava embevecido com a distinção, minimizei o acontecimento e só relatei a revelação mais tarde, no segundo passo da via crucis. Ruminei nossa conversa por um bom tempo. Depois ela foi se apagando, mas ficou a delicadeza eterna do gesto e do convite.
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Nota do editor: Rosental Ramos da Silva nasceu no dia 5 de maio de 1926 na cidade de Muriaé, zona da mata de Minas Gerais. Os pais eram agricultores e ele, que se tornou cozinheiro, aprendeu o ofício dentro de casa, enquanto assistia a mãe entre os pratos e panelas. Depois, já famoso nos restaurantes mais badalados do Rio de Janeiro, conheceu os mais importantes políticos do país, inclusive Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Em seu depoimento ao Museu da Pessoa, disse que foi convidado pelo “presidente Bossa Nova” a participar de banquetes durante a construção da nova Capital da República. Rosental faleceu no dia 6 de setembro de 2005, aos 79 anos.
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(*) Luiz Philippe Torelly, arquiteto e urbanista.