"A vida é de quem se atreve a viver".


Brasília não existiria sem o Lago Paranoá, e vice versa
O sonho de Glaziou

Luiz Philippe Torelly –

Uma antiga marchinha de carnaval dos anos 60 dizia assim: “Brasília não tem praia, Brasília não tem mar, mas tem o Lago do Paranoá.” Era uma resposta dos nativos adotivos ao enorme contingente de cariocas que viviam se lamuriando com saudades de Copacabana. Muitos dos mais jovens talvez pensem que o Lago sempre existiu, pois é impossível pensar Brasília sem ele, de tal sorte estão amalgamados. Igualmente muitos devem achar que se trata de mais uma das muitas invenções do criador de Brasília, Lúcio Costa, ou de seu arquiteto maior Oscar Niemeyer.

Na verdade o autor da ideia de criação do Lago Paranoá foi o engenheiro, botânico e paisagista francês Auguste François Marie Glaziou, integrante da 2ª Missão Cruls ocorrida de 1894 a 1896.

A determinação de interiorizar a capital constava da 1ª Constituição republicana de 1891. Em 1892 foi nomeado o astrônomo belga naturalizado brasileiro Luiz Cruls, para realizar o primeiro relatório de impacto ambiental que se tem notícia no Brasil, com levantamentos da fauna, flora, hidrografia, clima, relevo, geologia e estabelecer as coordenadas de demarcação do quadrilátero da nova capital, bem maior que o atual, com 14.400Km². Os trabalhos duraram até 1894, quando foi publicado o Relatório Cruls, uma proto-certidão de nascimento de Brasília. Teríamos que aguardar 60 anos para que o dispositivo constitucional se tornasse realidade e as obras tivessem início.

Glaziou veio para o Brasil em 1858 fixando-se no Rio de Janeiro, então capital do Império. Exerceu os cargos de Diretor de Parques e Jardins da Casa Imperial e Inspetor dos Jardins Municipais. Dentre seus trabalhos mais importantes e que são referências no paisagismo brasileiro, destacam-se o Passeio Público, a atual Praça da República, antigo Campo de Santana e os jardins da Quinta da Boa Vista, residência da família imperial, todos no Rio de Janeiro.

Glaziou como outros viajantes que por aqui passaram, se impressionou positivamente com o clima, a flora e a fauna, e as demais condições geográficas. Vale a pena fazer a transcrição de um pequeno trecho da carta de Glaziou, quando ele se refere a possível criação do lago:

A todas essas riquezas oferecidas ao homem laborioso, nesse centro de planalto, juntam-se mais os recursos e a vantagem que lhe proporcionarão ainda abundantes águas piscosas. Entre os dois grandes chapadões conhecidos na localidade pelos nomes de Gama e Paranoá, existe uma imensa planície sujeita a ser coberta pelas águas da estação chuvosa: outrora era um lago devido à junção de diferentes cursos de água formando o Paranoá; o excedente desse lago, atravessando uma depressão do chapadão, acabou com o carrear dos saibros e mesmo das pedras grossas, por abrir nesse ponto uma brecha funda, de paredes quase verticais pela qual se precipitam hoje todas as águas dessas alturas. É fácil compreender que, fechando essa brecha com uma obra de arte forçosamente a água tomará ao seu lugar primitivo e formará um lago navegável em todos os sentidos, num comprimento de 20 a 25 quilômetros sobre uma largura de16 a 18.”

O Lago Paranoá já havia sido profetizado alguns anos antes, em 1883, por Dom Bosco, em seu sonho profético sobre Brasília. Glaziou, observador atento da natureza, não só constatou a viabilidade de formação do Lago, como também indicou a solução técnica que foi adotada décadas depois.

Brasília e seu lago estavam fadados a se tornar realidade. Desde o século XVIII a interiorização da capital foi preconizada para permitir uma ocupação mais racional das dimensões continentais do país. Sempre criticada desde a época do início de sua construção, não tenho dúvidas que Brasília cumpriu o papel que dela se esperava: integrar o território nacional e ocupar os enormes vazios demográficos da região centro-oeste, hoje o grande celeiro do país.

Para concluir, uma pequena estória sobre o Lago do qual foram protagonistas o presidente Juscelino Kubitscheck e Gustavo Corção, colunista de O Globo. Corção homem de ideias conservadoras sempre fora contra a construção de Brasília. Criticava-a regularmente em sua coluna. Dizia que o lago nunca encheria, pois a terra era arenosa e absorveria toda a água. Quando finalmente o lago atingiu a famosa cota mil. JK, conhecido por seu bom humor, enviou o seguinte telegrama a Corção: Encheu!

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