Guilherme Cadaval (*) –
“A vitória de Trump é possível porque o mainstream não consegue sequer imaginá-la”. Esta teria sido, segundo Giuliano da Empoli, a intuição capital de Steve Bannon, talvez a maior referência para a onda de governos de extrema-direita que pipocam com assombrosa coordenação por toda a superfície do globo terrestre. O que a imaginação sequer consegue conceber como possível, dificilmente poderá ser combatido, muito menos antecipado.
A vitória de Trump de fato tomou grande parte do mundo de surpresa, com exceção, é claro, da outra grande parte do mundo, constituída por seus apoiadores e simpatizantes. Mas o que Empoli mostra em Engenheiros do Caos, publicado no ano passado pela Editora Vestígio, é que o caminho para esta vitória começou a ser construído muito tempo antes, fruto de um encontro inusitado e explosivo, entre um especialista em marketing e um comediante, na Itália do início do século: Gianroberto Casaleggio e seu “avatar de carne e osso de um partido-algoritmo”, Beppe Grillo.
Trata-se do Movimento 5 Estrelas, melhor caracterizado pelo palavrão “tecnopopulismo pós-ideológico”. Toda a estrutura do movimento – que não é, nem um partido, nem uma associação, “mas um blog mesmo” – está baseada na coleta de dados de seus “eleitores-consumidores” sobre a satisfação de suas demandas. Pouco importa qualquer tipo de orientação ideológica, o que realmente conta é a possibilidade de engajar de maneira constante um número suficiente de pessoas, num tipo de ação que é a tradução política do Facebook e do Google.
De fato, a lógica reinante é a das redes sociais, onde não se filtra o conteúdo consumido, apenas se avança vorazmente para a próxima tendência, na velocidade de um desejo que não aceita esperar, que deve ser saciado imediatamente, por vezes antes mesmo que seja realmente formulado. Ora, por que com a política deveria ser diferente?
A revolução algorítmica na política, representada pelo M5E, soube explorar muito bem essa capacidade da internet, e especificamente das redes sociais, de engajar seus usuários constantemente. Para estes, internet é sinônimo de participação. Não é mais preciso se submeter à lentidão dos dinossauros políticos, com seus rituais demorados e ineficazes, pode-se fazer a revolução aqui e agora, com o clique de um botão.
Mas a partir de quê ocorre este engajamento? Trata-se de inflamar as paixões. A nova lógica das mídias faz o dinheiro circular a partir daquilo que gera maior engajamento, o que significa que ela acentua os conteúdos capazes de suscitar as emoções mais fortes, que são as que têm sucesso em manter o usuário constantemente atento. Para o jogo político, isso implica em uma mudança radical. Pois o movimento que consistia em falar ao eleitor médio, ocupando o “centro” de razoabilidade do espectro político, começa a tornar-se obsoleto. A lógica das redes joga o discurso para os extremos. A quantidade massiva de dados coletados permite individualizar cada eleitor a um nível tal, que é possível falar para grupelhos isolados, que não se misturam, que talvez nem saibam da existência um do outro, que podem facilmente apresentar reivindicações contraditórias, mas que se organizam em torno de uma mesma candidatura, de um mesmo projeto político.
O que une estes grupelhos seria, talvez acima de tudo, uma paixão em comum: a cólera. O tecnopopulismo pós-ideológico rearticula o conflito político em torno de uma oposição bastante simples entre o “povo” e a “elite”. Ele autoriza que a cólera daquele finalmente se expresse, nos termos violentos, chulos e politicamente incorretos que escandalizam a elite, ao mesmo tempo em que se oferece como seu porta-voz. Se para Lenin o comunismo era “os Sovietes e a eletricidade”, para os engenheiros do caos o populismo é “filho do casamento entre a cólera e os algoritmos”.
Os algoritmos oferecem, de maneira muito rápida, imediata, aquilo que a cólera deseja: a participação, o engajamento na cena política daqueles que sentem-se dela excluídos, e, assim, a sua consequente transformação. O que é fundamental compreender, segundo Empoli, é que a participação nestes movimentos, como o M5E, é uma “experiência muito gratificante” e “frequentemente alegre”. O sentimento de finalmente ser ouvido, de ter algum controle sobre os acontecimentos, e de não mais ser apenas um espectador passivo da história.
Sabemos que, até aqui, quem melhor soube galvanizar estes sentimentos na era dos algoritmos e do big data foram figuras como Trump, Orban e Bolsonaro, a “internacional dos nacionalistas”. Resta perguntar: onde estão os alquimistas da esquerda?
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(*) Guilherme Cadaval é formado em Filosofia pela UFRJ, onde concluiu mestrado e doutorado. É autor de “Escrever a mágoa: um cruzamento entre Nietzsche e Derrida”.