Maria de Lourdes Teodoro (*) –
Quando visitei o Quilombo Kalunga, tive uma conversa com Dona Procópia que, a certa altura, me disse: “eles pensava que nós num tinha identidade, que nós tava escondido – e acrescentou sorridente - mas nós tava tudo representado”.
Aqui, a palavra “identidade” queria dizer também o pertencimento a uma comunidade. A importância de ser o que a pessoa é; o fato de estar “representada”, de ter importância uns para os outros, na própria comunidade, deixava clara a autoestima do grupo, através de Dona Procópia. A confidência que ela me fez pressupõe um laço social comunitário; vínculos de respeito entre as pessoas.
Esse exemplo me serve para dizer que o reconhecimento da identidade que o grupo ou a pessoa se atribui é fundamental para o bem estar do grupo, e dos membros da comunidade. O reconhecimento das qualidades da pessoa é fundamental para fechar o ciclo de uma identidade conhecida e reconhecida.
Identidade é uma noção naturalmente dinâmica, impermanente, ela mobiliza aspectos psicológicos, de gênero, emocionais, culturais, biológicos, territoriais, econômicos, políticos etc.
A identidade é atingida, ferida, sempre que você é humilhado, desqualificado, negado. Sempre que uma criança, um jovem negro, uma pessoa afrobrasileira é agredida, assassinada pela polícia toda a população afrobrasileira se sente atingida, negada, violentada, agredida em seus direitos de cidadã, hostilizada em sua existência.
Sempre que um povo indígena é ameaçado, uma população quilombola é ameaçada, desalojada, expropriada, sua identidade étnica, grupal, comunitária, é atingida. Esse golpe resvala nos indivíduos, nas pessoas, o sofrimento se torna coletivo e individual.
Na origem da identidade está toda uma série de identificações, que acompanha o ser humano até bem tarde em sua vida. Na constituição de uma identidade, se compreender, compreender sua própria identidade, compreender o outro, conhecer a identidade do mundo exterior e ser compreendido, isto é, ter uma identidade conhecida e reconhecida formam uma única configuração.
Questões de classe social, de origem regional, de pertencimento étnico, de gênero, de filiação, entre outras, costumam estar na origem de alguns problemas de identidade bastante frequentes. Problemas que estão na origem do etnocentrismo, da discriminação racial e podem chegar até o racismo.
O etnocentrismo só é superado quando o crescimento mental, a maturidade emocional, o grau de humanização de indivíduos, grupos étnicos e sociedades atingem certo patamar.
Nesse ponto, valores como ética, democracia, equidade, justiça, igualdade de direitos e de deveres fazem sentido e se tornam exigências para o bom funcionamento de coletividades mais complexas, como a nossa.
Quando o modo de ver o Outro provoca injustiças, violências, racismo, o bom funcionamento de uma sociedade deixa de existir, como ocorre hoje em nosso país.
Autoestima – Autoestima é uma questão central na vida de todos. Em geral, ela tem sua base nos primeiros cuidados que o bebê, a pequena criança e mesmo o adolescente recebem em casa. Há uma relação estreita entre autoestima e vínculos afetivos. O sentimento de pertencer a uma família, a um grupo, a uma comunidade, a um grupo étnico-racial, saber-se reconhecido, ter um lugar onde compartilhar seus dons, é inerente à autoestima saudável.
Quando um jovem trabalhador, uma jovem trabalhadora, recebe o seu primeiro salário, há uma grande probabilidade de aumento significativo de sua autoestima. A pessoa se reconhece capaz de garantir o próprio sustento, pelo menos em parte! Quando uma chefe de família ou um chefe de família adquire a casa própria, um terreno onde construir, essa conquista é um fator importantíssimo para elevação da autoestima.
Uma criança ou uma pessoa adulta quando aprende a ler e começa a mostrar aos demais sua conquista vivem o aumento da autoestima; pode ser, por vezes, emocionante a expressão de felicidade que os invade; do mesmo modo, a alegria de passar em um vestibular, em um concurso para emprego etc. São pequenas ou grandes conquistas e perdas que vão permitindo a construção da história pessoal.
Condenados a viver com aquilo que produzimos e com aquilo que herdamos, nos cabe construir nossa liberdade. Nossos saberes não são apenas o que herdamos, mas também o que a experiência de vida de cada uma e de cada um tem lhe ensinado, afirma Adalberto Barreto, criador da Terapia Comunitária Sistêmica Integrativa. Com sua metodologia, a TCI vem demonstrado que todo indivíduo, toda comunidade tem conhecimento a compartilhar e o potencial de superação de suas dificuldades.
Nem toda criança brasileira, negra, branca, asiática etc, recebeu, em casa, carinho, elogios para seus traços físicos, seus cabelos, sua cor, seu tom de pele, sua personalidade, suas escolhas. Muitas vezes faltou reforço positivo para seu modo de ser ou faltou estímulo, para seu desempenho escolar: e esses mimos constroem nossa autoestima.
Votos de confiança e estímulos ao potencial individual geram e fortalecem a autoestima de crianças e adolescentes. Se os cuidadores falharam nisso, cabe a cada sujeito humano se reinventar.
Com autoestima saudável, mesmo uma mãe analfabeta pode educar bem seus filhos para se tornarem o que quiserem ser: livres cidadãos e cidadãs do mundo.
No Brasil, a abolição da escravidão deu origem aos primeiros sem teto, aos primeiros sem-terra: os que deixavam o regime da escravidão foram ocupando os morros, as periferias. Os privilégios garantidos a uns, durante séculos, explicam a extrema desigualdade social de hoje. Aspectos desta desigualdade atingem seu extremo em maio de 2020 com as precárias condições da saúde pública para atender aos atingidos pela pandemia causada pelo vírus COVID 19.
Talvez a Princesa não pudesse imaginar que o texto que ela assinou, pondo fim à escravidão, fosse tão incompleto: a Lei Áurea não assinala compromissos do Estado com a população afrobrasileira; não lhe outorga cidadania: propriedade de terras, direito à saúde, à educação com o acesso ao mercado de trabalho.
O silêncio dos políticos que a sucederam ecoa no fascismo atual, nas balas da polícia que assassina, no cinismo dos que negam o racismo, na justiça que se omite.
O filósofo camaronês Achile Mbembe, cita Foucault sobre o moderno funcionamento do Estado que, “a determinado momento, a um certo limite e em certas condições, passaria pelo racismo”.
Freud disse em uma entrevista: “Minha língua é o alemão [...] Eu me considerei um intelectual alemão, até perceber o crescimento do preconceito antissemita na Alemanha e na Áustria. Desde então prefiro me considerar judeu”. Com esse posicionamento, Freud faz uma opção identitária, por um pertencimento a um grupo marginalizado no contexto nazista. Esse também é um modo de regular sua autoestima, assumindo sua personalidade étnica.
Foi esse o mecanismo que jovens escritores brasileiros utilizaram ao assumir uma identidade como Negros ao lançar o primeiro número dos Cadernos Negros, em 1978. Assumir sua negritude biológica para contestar a lavagem cerebral operada pelo colonialismo (português, francês, espanhol, etc.) e pelo racismo brasileiro. Todavia, como disse Frantz Fanon, falando dos antilhanos, caímos todos numa segunda falácia.
A negritude que serve para libertar os afro-brasileiros da alienação deve ser uma etapa em direção à plena liberdade de sujeito humano.
O tornar-se negro, tornar-se negra, para aqueles que se descobrem negros nos séculos XX e XXI, precisa ser vivido com profundo respeito por sua história pessoal e grupal. Esse passado precisa ser respeitado, ser tratado sem eufemismos. Esse conhecimento sincero pode produzir uma autoestima de grupo libertadora. Não há consistência identitária sem uma base histórica em sua constituição.
Hoje é preciso alcançar a consciência de nossa humanidade, de modo a deixar aos nossos descendentes a noção de ser humano, de sujeito, de pessoa humana, de cidadãos e cidadãs do mundo com direitos e deveres como quaisquer outros.
O outro não é mais do que a semelhança e a diferença reunidas, assim como nós, vistos ou invisibilizados por ele. O essencial é o que sabemos e dizemos de nós mesmos.
O segredo da autoestima: façamos de nossas feridas pérolas, em um ativismo que seja mais amoroso por nós mesmas, por nós mesmos!
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(*) Maria de Lourdes Teodoro é ativista contra o racismo no Brasil desde os anos 1970. É psicanalista, membro da IPA, Londres, via SPBsb e terapeuta comunitária (em formação) MISMEC-DF.
(**) Este artigo é revisão do texto da autora, publicado no jornal Correio Braziliense de 23/5/2020.