Douglas Belchior e Jurema Werneck (*) -
Nesta terça-feira (26/5) lembramos, revoltados, a memória de João Pedro Matos Pinto, 14, assassinado na casa da família, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ). No último dia 18/5, ele brincava com primos quando agentes das polícias Federal e Civil alvejaram o imóvel e o atingiram. Ao completar uma semana dessa morte brutal, nos unimos à dor desta família negra brasileira: a professora Rafaela Pinto, mãe; o autônomo Neilton Pinto, pai; e Rebecca, a irmã de 4 anos.
O crime bárbaro é mais um a confirmar a necropolítica do Estado brasileiro. A rotina de violentas operações em favelas e periferias não foi interrompida nem na mais mortal pandemia que o país já viveu. João Pedro e os primos obedeciam à orientação de distanciamento social do governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), e da Organização Mundial de Saúde para se protegerem da Covid-19. Mas, para eles, assim como para inúmeras famílias negras do Brasil, a residência, a rua, a comunidade não são espaços seguros.
Três dias antes, uma ação da PM no Complexo do Alemão deixou 13 mortos. Na mesma segunda-feira (18/5), Iago César Gonzaga, 21, foi torturado e morto durante outra operação da PM, em Acari. No dia seguinte, João Vitor da Rocha, 18, perdeu a vida durante incursão da PM na Cidade de Deus, que interrompeu a distribuição de cestas básicas. Na quinta (21), Rodrigo Cerqueira, 19, foi alvejado no Morro da Providência. Tem sido assim no Rio. Tem sido assim no Brasil. Desde sempre.
Mesmo com casos de Covid-19 se multiplicando no país, houve aumento de 11% nas mortes violentas em março. Em São Paulo, os óbitos causados pela PM no primeiro trimestre de 2020 foram recorde na série histórica; dois terços das vítimas com registro de raça eram negras. A Bahia foi o estado com maior número de crimes violentos em março: 525. O Ceará registrou 366 homicídios nos primeiros 25 dias de abril. Em Pernambuco, de janeiro a março, 990 pessoas foram assassinadas. Na região metropolitana do Rio, a polícia matou 69 pessoas entre 15 de março, início do isolamento, e 19 de maio, segundo o Observatório de Segurança RJ.
A população negra é alvo da morte violenta e sistemática. Todo ano, cerca de 45 mil pessoas negras são assassinadas no Brasil. Estamos imersos na necropolítica do matar e deixar morrer. Os serviços públicos de saúde em colapso também estão levando negros e pobres à morte de modo desproporcional. Até quando vamos ignorar o racismo, nosso vírus letal, e o genocídio negro, pandemia de sempre?
A Coalizão Negra Por Direitos responsabiliza o estado do Rio de Janeiro pelas mortes resultantes das operações policiais no Complexo do Alemão (13 vítimas), em Acari (Iago), na Cidade de Deus (João Vitor) e no Morro da Providência (Rodrigo). No Complexo do Salgueiro (João Pedro), há corresponsabilidade da Polícia Federal. Notificamos o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), a Assembleia Legislativa (Alerj), o Comando Geral da PM-RJ, o governador Wilson Witzel e a Corregedoria da PM para que haja investigação rigorosa dos casos. Encaminhamos denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
A Anistia Internacional Brasil enviou ofícios ao governador e ao procurador-geral de Justiça, Eduardo Gussen, solicitando informações sobre operações policiais durante a pandemia. Wilson Witzel recebeu representantes da Anistia e de comunidades cariocas. Reiteramos a responsabilidade do governador na política de segurança que naturaliza operações policiais que violam os direitos humanos.
Convidamos a sociedade brasileira a participar da campanha alvosdogenocidio.org, que exige dos órgãos de imprensa que mortes sistemáticas de pessoas negras sejam nomeadas como genocídio. Hoje também choramos as mortes de brasileiras e brasileiros pela Covid-19. O país adicionou aos grupos de risco da pandemia pessoas negras e pobres, moradores de favelas, periferias, quilombos e aldeias, pessoas em situação de rua e encarcerados.
A dor pelo assassinato de João Pedro e por tantos outros óbitos aumenta a revolta pelo genocídio de todos os dias. Pelos sonhos e pelas vidas interrompidas, continuaremos em luta permanente.
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(*) Douglas Belchior é professor de história, membro da Uneafro Brasil e da Coalizão Negra por Direitos. Jurema Werneck é diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil.