"A vida é de quem se atreve a viver".


Jean Wyllys: “Quando sairmos do confinamento, a verdadeira doença ainda precisa ser combatida. Trata-se do mal que nos flagelou antes do ataque do novo coronavírus: o fascismo, suas mentiras e seu ódio”.
A doença das fake news

Jean Wyllys (*) –

1 - “Como você está lidando com essa nova onda de calúnias, fake news e insultos contra você?”, perguntou-me uma amiga, referindo-se às mentiras e teorias conspiratórias contra mim disparadas em massa nas mídias sociais por uma organização criminosa em apoio ao governo fascista de Bolsonaro.

Organização essa especializada no assassinato de reputações de autoridades da república, como os ministros do Supremo Tribunal Federal e os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado; de jornalistas; e de outras figuras públicas que se opõem - ou tentam impor limites democráticos - à gestão fraudulenta, violenta e incompetente que este governo está fazendo da pandemia de Covid-19, que já matou mais de 5 mil pessoas no país no último mês.

Eu respondi à minha amiga que o que mais me incomodava em ser alvo dessa organização criminosa era o ódio que ela despertava em mim. E acrescentei que, antes de tomar as providências legais cabíveis em âmbito nacional e internacional, eu preciso sempre me livrar primeiro desse ódio. Minha amiga me disse que também lhe doía muito sentir o ódio que esses criminosos lhe despertavam.

2 - Um amigo artista plástico há dois dias perdeu seu pai querido para a Covid-19. Este saíra de casa uma única vez nos últimos 30 dias para ir ao supermercado; lamentavelmente, infectou-se e adoeceu. Agonizou sozinho até a morte. E foi enterrado sem rituais fúnebres, sem ninguém que lhe amava por perto, por razões sanitárias. Meu amigo está sofrendo e me disse que, quando vê, na televisão, Bolsonaro, seus ministros e os parlamentares que lhe apoiam convocando a população e os trabalhadores mais pobres a saírem do confinamento sem apresentar qualquer plano minimamente sensato de políticas para conter a pandemia e garantir as vidas humanas, que quando ele vê esse crime de lesa-humanidade ser perpetrado diante das câmeras de televisão, ele sente um ódio profundo de Bolsonaro e sua gente, mas que ele não gosta desse sentimento.

3 - Um outro amigo, médico, entubou ontem, na UTI do hospital em que trabalha, a esposa de um colega seu que chegou com 70% dos pulmões comprometidos pela Covid-19. Seu colega, bolsonarista fanático, assim como a esposa agora doente, participaram das últimas manifestações verde-e-amarelas que negavam a gravidade da doença e exigiam a abertura do comércio. Meu amigo me disse que, ao ver o estado de saúde da esposa do colega, sentiu ódio em relação aos negacionistas da pandemia, principalmente daqueles que têm acesso à informação. E que não gostaria de ter esse sentimento.

Nesses três relatos verídicos (embora eu tenha ocultado os nomes das pessoas para preservá-las), o ódio aparece como um sentimento infeccioso; como o sintoma de um contágio que produz sofrimento, como algo que adoece as pessoas tanto quanto o novo coronavírus.

A ensaísta e crítica literária Susan Sontag, em seu monumental “A doença como metáfora”, adverte-nos para os perigos que há em se abordar determinadas enfermidades como outra coisa que não sejam o que elas são de fato: doenças.

Sontag está certa, pois metáforas em torno de doenças como a tuberculose, o câncer e a AIDS formam responsáveis pela estigmatização e marginalização dos doentes e até mesmo de violências físicas contra estes.

Porém, a própria Sontag admite, citando o filósofo Aristóteles, que é impossível pensar sem metáforas. Sendo assim, recorro à infecção por vírus como metáfora dos danos que o governo Bolsonaro e a extrema-direita estão causando nas subjetividades e na saúde emocional dos brasileiros (esta metáfora pode ser estendida aos estragos provocados por idiotas de extrema-direita em outras partes do mundo, vide a recomendação que Donald Trump fez na televisão de que as vítimas da Covid-19 tomassem detergente para combater o vírus, o que provocou vários casos envenenamento aqui nos EUA). É a metáfora mais pertinente em tempo de pandemia de um novo coronavírus.

Não há nome mais apropriado para a organização criminosa que ataca a oposição democrática ao governo fascista de Bolsonaro do que “Gabinete do Ódio”. Independentemente de se este tem ou não uma sala física para si no Palácio do Planalto ou em algum dos escritórios dos parlamentares integrantes ou cúmplices da quadrilha, o gabinete existe como foco de transmissão de agentes infecciosos das subjetividades: calúnias e teorias conspiratórias na forma principalmente de fake news (notícias mentirosas), esses vírus de consciência capazes de levar pessoas a matar e morrer por ódio, e, antes, despertar ódio em pessoas que não gostam de odiar, que rejeitam esse sentimento maligno.

A Polícia Federal já tem as provas do envolvimento direto de Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República, na organização criminosa batizada de “Gabinete do Ódio”. A PF também já sabe quem são os outros integrantes da quadrilha.

Este fato - mais as investigações que a Polícia Federal está empreendendo em torno das milícias do Rio de Janeiro e do assassinato de Marielle Franco em 2018 e que revelam laços estreitos entre os assassinos e Flavio Bolsonaro - levaram o presidente Jair Bolsonaro a tentar intervir na Polícia Federal, o que serviu de gancho para o agora ex-ministro da Justiça Sergio Moro deixar o governo, acusando-o de corrupção e outros crimes mais graves.

A saída ruidosa de Sergio Moro acontece logo depois da ruptura de Mandetta, ex-ministro da Saúde que vinha tratando a pandemia de Covid-19 com alguma seriedade nesse governo de incompententes, responsável direto pelas cenas tenebrosas de enterros em valas comuns de centenas de mortos pela Covid-19 a que os brasileiros assistem todos os dias pela televisão.

A fim de criar uma cortina de fumaça para a incompetência e corrupção de Bolsonaro, e, ao mesmo tempo, mover as hostes de imbecis odiosos nas mídias sociais, o “Gabinete do Ódio” passou os dois últimos dias disseminando uma fake news absurda contra mim (a de que eu teria algum envolvimento no episódio da facada que Bolsonaro teria sofrido durante a campanha eleitoral em 2018); uma calúnia já desmentida exaustivamente tanto por investigação conclusivas da Polícia Federal quanto pela imprensa.

O objetivo último da recuperação dessa calúnia por parte do “Gabinete do Ódio” é jogar suspeição sobre as graves denúncias contra Bolsonaro feitas por Sergio Moro quando de sua ruptura com o governo do qual era parte essencial. A ideia é sugerir por meio desta calúnia em forma de fake news que Sergio Moro, “para me proteger”, não teria feito investigações corretas em relação ao suspeitíssimo atentado que Bolsonaro sofreu na campanha eleitoral de 2018. Sim, trata-se de uma ideia absurda que só convence a estúpidos fanáticos e... homofóbicos!

O “Gabinete do Ódio” decidiu me envolver nesse ataque a Sergio Moro porque sabe que a homofobia (o ódio e a aversão social mais ou menos consciente aos homossexuais e seus modos de vida) é um elemento de coesão e de mobilização das hostes fascistas. Trata-se de promover o ódio a Sergio Moro por contágio: fica mais fácil odiá-lo e acusá-lo de que “conspirou contra Bolsonaro” se ele for associado à “proteção” de um homem gay já odiado por outras tantas calúnias e mentiras disseminadas por essa mesma organização criminosa que agora se volta contra Moro depois de tê-lo favorecido no passado.

Não é mera coincidência que Bolsonaro tenha dito, por meio de seu perfil no Facebook, que a Organização Mundial de Saúde (OMS) “incentiva a masturbação e a homossexualidade em crianças”. Trata-se de uma mentira descarada e grave; trata-se de uma calúnia perpetrada contra o organismo que está liderando, em todo o mundo, o enfrentamento à Covid-19 e a assistência humanitária às suas vítimas.

Assim como “a mamadeira de piroca” e o “kit gay”, essa fake news de Bolsonaro contra a OMS busca interpelar a homofobia que amalgama os bolsonaristas, que os identifica entre si. E não se trata de uma representação negativa qualquer da homossexualidade, mas daquela representação mentirosa que a trata como ameaça à infância inocente.

Essa tática não é nova. A história nos mostra diferentes episódios em que estupradores e negociantes de mulheres escravas, exploradores sexuais de prostitutas e das próprias esposas, assediadores asquerosos de meninas e mandantes quando não perpetradores do assassinato de crianças pretas e pobres usaram fake news, mentiras, caricaturas grotescas e casos isolados para difamar a comunidade de gays e lésbicas, acusando-a de “ameaça à infância”. Dessa forma, manipulando a homofobia social da maioria, conseguiram dirigir o ódio desta contra os gays e lésbicas e esconder seus próprios crimes.

Ao final das eleições de 2018, a filósofa Márcia Tiburi, o jurista Renan Quinalha, o psicanalista lacaniano Antonio Quinet e eu escrevemos um dossiê sobre a centralidade da homofobia na vitória da extrema-direita no Brasil. Parte expressiva das esquerdas segue menosprezando esse dado e, por isso, ineficaz ante o bolsonarismo.

Já disse e repito: ratos acuados são perigosos porque atacam. Os ratos acuados do governo Bolsonaro estão atacando com calúnias e teorias conspiratórias na forma de fake news desde Sérgio Moro até a OMS e o Papa Francisco, passando pelos ministros do STF, os jornalistas da TV Globo e da Folha de São Paulo e a minha pessoa. Mas ainda que ataquem, esses ratos acuados são ratos acuados, e nós sabemos qual o destino os ratos acuados.

Eles são focos de transmissão de agentes infecciosos. Estão adoecendo o país, literal e metaforicamente. São responsáveis pelas mortes em decorrência da Covid-19 e pela epidemia de fake news que leva ao ódio; são culpados também por despertar o ódio em quem não quer esse sentimento para si.

Aí reside o nosso verdadeiro desafio após a pandemia. Quando sairmos do confinamento, a verdadeira doença ainda precisa ser combatida. Trata-se do mal que nos flagelou antes do ataque do novo coronavírus: o fascismo, suas mentiras e seu ódio.
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(*) Jean Wyllys é escritor, jornalista. Atualmente é professor visitante na Universidade de Harvard (EUA). Foi eleito três vezes consecutivas deputado federal pelo PSol, e renunciou a seu último mandato em função de graves ameaças de morte, exilando-se na Europa. Por três vezes recebeu o Prêmio Congresso em Foco de melhor parlamentar.

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