Amaro Santos –
Hoje acordei pensando na “Geni”, de Chico Buarque. Não havia escutado a obra recentemente. Mas ela estava ali, assaltando minha memória antes do café da manhã em época de confinamento. Alguma razão haveria. Em seguida, entre uma e outra xícara de café puro, leio um artigo escrito pelo prêmio Pulitzer Thomas Friedman no New York Times deste domingo, 22/3. Neste artigo, Friedman menciona a defesa feita por David Katz, especialista em medicina preventiva da Universidade de Yale, a uma mudança de postura das autoridades públicas: "Em vez de extensa quarentena, a volta ao trabalho em duas semanas, porque outro vírus, o do abalo da economia, será pior".
Ao citar a taxa de mortalidade do coronavírus, de menos de 1% da população, Friedman alfineta: “É como um elefante sendo atacado por um gato doméstico. Frustrado e tentando evitar o gato, o elefante acidentalmente pula de um penhasco e morre”.
As horas passam, ainda degluto o artigo. E sou brindado com um vídeo de palestra-TED proferida por Bill Gates em 2014. Ali, o bilionário defende um sistema de prevenção universal a pandemias, incluindo investimento pesado em ciência, tecnologia, logística e medicina preventiva. Justifica que a ameaça maior, hoje (digo, seis anos atrás), não é uma guerra nuclear, mas um microrganismo invisível aos nossos olhos. Para Bill Gates, seria necessário “abraçar” países pobres com recursos bem utilizados para evitar a contaminações em grande escala.
De um lado, o mundo do capital, que não quer esperar nem pagar para ver. Quer a volta da "normalidade", mesmo com as milhares e milhares de mortes anunciadas e ainda previstas. De outro, o mundo pretérito mencionado por Bill Gates, frustrado por uma resposta unificada das Nações, até agora inexistente. Em parte, é também o mundo defendido por Francisco, o papa, que teve que adiar o encontro preparado para acontecer por esses dias em Assis, na agora devastada Itália, com cerca de 30 jovens economistas de vários países. Era para discutir uma nova forma de convivência entre o capital e o trabalho num planeta em que combate à desigualdade e sustentabilidade clamam por espaço nas agendas dos chefes de Estado.
Um e outro mundo se desentendem quando o assunto é quem sentará à cabeceira da mesa. Mas há mais discordância entre eles.
Wall Street – não necessariamente defendido pelo articulista do NYT - tem a pressa dos acionistas, e sequer imagina um debate sobre cooperação financiada por grandes grupos transnacionais. Os artífices da pressa na retomada da rotina casa-trabalho-casa apontam que a crise de saúde que se agiganta traz como ameaça maior a saúde econômica do Planeta, e que isso nos deixará todos mais pobres.
Pausa para entender o que seria essa equivalência de pobreza: o grande acionista de uma corporação que lucrou, digamos, U$ 15 bilhões em 2019, irá perder algo como U$ 30 milhões no próximo balanço. Plausível, não? Já a dona Cleide, de Paraisópolis, na capital paulista, cujos dois filhos e marido não têm para onde correr nessa pandemia, e que somava pouco mais de U$ 300 em patrimônio, poderá, com sua família, viver daqui a pouco na calçada mais próxima, após ter trocado o pouco que tinha por comida.
O acionista, a Dona Cleide, assim como Thomas Friedman, Bill Gates e o papa representam aqui dois mundos divorciados. Uns numa bola, ou bolha, outros noutra. E se o almoço ainda não está pronto, dá tempo de falar da Geni, cuja letra e acordes, sabia, não vieram em vão.
O capital está preocupado. Precisa da volta de Dona Cleide e de sua família nas ruas, a trabalho. Não há tempo para pensar em algo que solucione problemas há muito enfrentados por essa senhora, que habita um entre tantos becos e vielas aglomeradas e sem saneamento básico, paraíso para qualquer vírus.
Bill Gates, que antecipou as desgraças de 2020, foi solenemente ignorado. Sobre Francisco, sequer foi notícia sua intenção de debater um novo mundo possível. Os mercados, sempre nervosos, voltarão a sorrir dia desses. Na TV, um certo comentarista econômico dirá que a retomada das atividades vai garantir a prosperidade de famílias “empreendedoras” como a da Dona Cleide. E a sociedade, aliviada, poderá voltar a jogar pedras nela, no marido, nos filhos, nas enfermeiras, nos médicos, nos cientistas e nessa ideia pueril e envelhecida de um papa anacrônico de que a saída disso tudo seria pensar de forma inteligente, inovadora e solidária um outro jeito de convivermos nesse planeta.