"A vida é de quem se atreve a viver".


Sizue Imanishi, 78, era casada com o jornalista Raimundo Pereira (jornais Opinião e Movimento, revistas Reportagem e Retrato do Brasil), e mãe de Ana, Lia, Rute e Raquel.
Sizue Imanishi, um vulcão quieto mas ativo

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Na manhã desta quarta, 29/1, participei da cerimônia de disposição das cinzas de uma grande amiga que faleceu na madrugada do último sábado (25/1) em decorrência do agravamento de uma antiga cirrose hepática medicamentosa. Sizue Imanishi, 78, esposa do jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, e mãe de Ana, Lia, Rute e Raquel.

Sizue foi socióloga e subversiva. Em meados dos anos 70, participou das atividades da Oposição Metalúrgica em São Paulo, no apoio ao Jornal dos Jornais (na foto abaixo, Sizue Imanishi e Raimundo Pereira nas comemorações dos 40 anos da greve dos metalúrgicos de São Paulo, dia 12 de outubro de 2019). Atuou no movimento popular da Zona Sul, de onde saíram as candidaturas vitoriosas a deputado federal do operário Aurélio Peres, do PCdoB, e a de Irma Passoni, a deputada estadual, ambos coordenadores do Movimento contra a Carestia. Nessa época associou-se também ao jornal Brasil Mulher, pioneiro do movimento feminista. No mandato do prefeito Humberto Parro, de Osasco (1983-88), trabalhou na iniciativa que levou à redução das tarifas do transporte público. Logo em seguida, passou a colaborar esporadicamente com o Unicef, o órgão das Nações Unidas dedicado às crianças e adolescentes, inclusive fazendo uma viagem à Nicarágua, Honduras e El Salvador.

Sizue mudou-se para Brasília em 1994. Durante sete anos foi oficial de Projetos de Mulher e Desenvolvimento do Unicef. Nos dois anos seguintes ocupou a coordenadoria das Atividades de Desenvolvimento Social no âmbito de um convênio da Prefeitura do Rio de Janeiro com a União Europeia. E entre 2004 e 2012 foi analista de projetos do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome, entre os quais os que envolviam o Movimento Nacional dos Catadores.

Catadores - Redijo essa memória na correria, sem muita pesquisa, deixando vácuos na carreira de Sizue. Não posso deixar de lado, porém, o fato de que ela participou, com a diretora do Serviço de Limpeza Urbana (SLU), Kátia Campos, da grande operação desencadeada pelo governo Rollemberg para fechar o Lixão da Estrutural, o maior até então da América Latina. Ela foi da equipe que organizou a realocação dos catadores nos galpões de triagem de material reciclável e, devido à sua formação psicanalítica, deu assistência social e psicológica às famílias da Estrutural em situações dramáticas. 

Magrinha, discreta, fala baixa, a Sizue parecia uma pessoa frágil. Na verdade, sempre foi um vulcão em ponto de ebulição. Quando explodia, dizem, era melhor não ficar muito perto. Uma vez foi jantar com as filhas no restaurante Almanara, em São Paulo. Como o garçom demorasse a atendê-las, Sizue pinchou um prato no chão. Os cacos do gesto extremo, mas calculado, atraíram afinal a atenção do funcionário, e a comida foi servida.

Anticonvencional - Durante a cerimônia das cinzas, Rute e Raquel lembraram alguns traços da mãe. Sizue era contrária às convenções, desprendida em relação à propriedade, cultivava um desprezo irônico pelas autoridades em geral (chamava o chefe de “chefinho” ou de “chefão”, nunca de “chefe”) e, de certa maneira, foi antipedagógica, deixando as filhas agirem como quisessem. Desde o início, no entanto, a família aprendeu a ser disciplinada em reuniões periódicas, com a redação de atas e tudo, em que se distribuíam as tarefas da casa.

A certa altura, Sizue decretou que passar roupa era desperdício de tempo e energia. Nunca se importou com o que as pessoas iriam dizer de suas roupas amarrotadas. Às vezes, de supetão, dava de presente o colar que estava usando para a interlocutora que acabava de elogiá-lo, tamanho era o seu desapego.

Eliane, sua cabeleireira, mandou uma mensagem de adeus contando que Sizue tinha o sonho de ser loura e cacheada. “Pedi para ela escolher uma das duas opções, e ela escolheu ser loura”. Era uma mulher “fashion”, disse Eliane.   

Poliglota - Sizue também gostava de estudar. Cursou japonês (a língua dos pais), alemão (a língua do primeiro marido de uma filha), francês (a língua do marido de outra filha), inglês, italiano e espanhol. Mais de uma vez eu a encontrei com a professora de mandarim na Livraria Sebinho. Sizue também se formou em psicanálise, tendo mantido um consultório nos últimos anos. 

Cultivar mudas de árvores num laboratório montado dentro de seu pequeno apartamento no Sudoeste e distribuí-las para os amigos era outro de seus passatempos. O Raimundo conta que um dia ele e ela visitaram um mogno que havia sido plantado há dez anos no sítio de um amigo. Nos últimos tempos ela vinha desenvolvendo, mais a sério, um projeto de reflorestamento de espécies nativas do Cerrado e em áreas degradadas do DF e da Mata Atlântica do Rio. Poucas horas antes de entrar em coma, ela apanhou o laptop para trabalhar no programa.  

A cerimônia do adeus aconteceu no quintal que fica nos fundos do apartamento no Sudoeste, cheio de árvores que ela mesma plantou. As cinzas foram depositadas nos pés dos espécimes principais, entre os quais um jambeiro e uma calabura. Essa última, replantada, tem uma história curiosa. É que um vizinho arrancou a árvore pelas raízes com a desculpa de que as frutas da calabura atraíam morcegos vampiros. Evidentemente, o cara era um ignorante de pai e mãe! 

“Pior tipo de raça” - O Raimundo lembrou que um caso semelhante havia acontecido há muito tempo na casa que eles tinham na Freguesia do Ó, em São Paulo. Chateado com as amoras que o vento jogava no seu quintal, um dia o vizinho trepou no muro disposto a invadir o quintal para cortar “o mato”. Raimundo pediu que o homem descesse do muro para conversar, e ver que ali não havia mato nenhum, mas espécies diversas que Sizue havia cultivado, formando um jardim-pomar. A filha do vizinho gritou do outro lado do muro: “Não adianta, pai, esse é o pior tipo de raça que tem, nordestino com japonês”.

Hoje, o rompante racista da vizinha faz a gente rir. O que poderia ter de ruim na união do Raimundo, natural de Exu, Pernambuco, e de Sizue, de Mairiporã, São Paulo, filha de pai japonês e mãe nissei? A vizinha talvez fosse uma quatrocentã, mas quem teve contato com a realeza foi o casal. Em 1967, Raimundo, a filha Ana, ainda bebê, Sizue e seus pais foram recebidos pelo príncipe herdeiro do Japão, Akihito, e a princesa Michiko, que visitavam o Brasil para comemorar os 70 anos da imigração japonesa.

Na foto (abaixo) vê-se o avô Kioji Imanishi apresentando a neta Ana Imanishi ao príncipe Akihito. Sizue aparece atrás do pai, aparentemente com um pano preto na altura da boca.

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