José Carlos Peliano (*) –
Já dizia o revolucionário russo Vladimir Lênin “é preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias. Sonhos, acredite neles”, em seu livro Que fazer? Ele já sabia por experiência própria que a realidade, externa a todos nós, embora seja o campo de luta pela sobrevivência, é menos real que a presença forte, dinâmica e corrente de nossos sonhos. Aquela a gente acaba tendo de viver de qualquer jeito como se pode, já os sonhos devemos ouvi-los, cultivá-los e prepará-los para acontecer.
Há quem siga o princípio e o mandamento de crer que o sonho é que é real e a realidade o cenário dos sonhos apenas. É o que descreve em texto vibrante e instigante Stefano D’Anna no livro A escola dos deuses, Pró Libera Editora, 2007.
Aqui no Brasil, Sidarta Ribeiro, recupera a força motora, vital e essencial do sonho em seu recente livro O oráculo da noite, Cia. das Letras, 2019.
Todos os três com propósitos diferentes, em ambiente diferentes e momentos também diferentes se aproximam do entendimento de que são os sonhos que trazem o gérmen da pista que levará à mudança por onde devemos seguir para levar à frente o que queremos de melhor para nós em nossas vidas. Não descartam os sonhos nem como folclore de nosso sono diário, tampouco como crença desmedida de serem somente expressão pura e simples de nossos recônditos desejos não realizados. Ao contrário, elegem os três os sonhos como arautos de um mapa de um novo caminho a seguir. Desde que passemos a levá-los em conta e tomá-los como nossos verdadeiros guardiões.
Sidarta vai mais a fundo e destaca a arqueologia dos sonhos, suas várias acepções quando dormimos, suas manifestações em todas as idades, suas ligações com a vida externa, enfim seu papel determinante no dia a dia de cada um de nós. Não que sonhemos numa noite e na manhã seguinte ele se realiza. Não é isso, há que se dar tempo para que ele venha a acontecer de uma forma ou de outra. Há o fator tempo, o sonho apenas aponta o caminho certo a seguir. Nossos passos na realidade ensejariam o tempo necessário para a realização do sonho, seria então uma simples equação, realidade = sonho + tempo.
Não se deve esquecer, contudo, que o sonho se adapta aos resultados de nosso quotidiano, dia após dia, indo se moldando aos nossos desejos, como informa Eduardo Galeano, na citação do Gênesis dos Maias, em seu livro Os Filhos dos dias, L&PM editora, 2012:
“E os dias se puseram a andar.
E eles, os dias, nos fizeram.
E assim fomos nascidos nós,
os filhos dos dias,
os averiguadores,
os buscadores da vida”
Averiguamos ao redor para buscar e viver. Vamos aos sonhos recuperar as pistas por onde caminharmos e decidirmos por quais caminhos seguir. Se a dita realidade tromba com nossos sonhos, devemos urgentemente trombar nossos sonhos com a realidade para adaptá-la aos nossos desígnios, do jeito de cada um. E do coletivo, quando nossos sonhos são semelhantes a de outros, dezenas, centenas, milhares, milhões. A apoteose dos sonhos!
Lênin, de outra forma, tanto acreditou que ajudou de forma decisiva na Revolução Russa na conclamação e motivação do coletivo dos trabalhadores. Ao seu modo, D’Anna traz o chamamento para cada um de nós por em prática a gramática do sonho trazida na magia de seus símbolos.
Mas como o nosso sonho de cada dia está ligado à nossa vida de cada dia, ele é por natureza diferenciado de acordo com nossas individualidades. Daí que nosso sonho de cada dia se liga à ocupação nossa de cada dia de acordo com as oportunidades que encontramos no mundo do trabalho. Além de nossas diferenças individuais de habilidades, portanto, somam-se as diferenças ocupacionais impostas e comandadas pelas escalas hierárquicas das empresas organizadas no mercado. Aquelas são diferenças naturais, só nossas, estas outras são diferenças determinadas pelo sistema e que acabam gerando desigualdades, especialmente quando o padrão ocupacional vigente difere do padrão que temos na realidade de nossos desejos, de nossos sonhos. Logo, temos de adaptar nossos sonhos dadas as características das ocupações no mercado de trabalho, de onde realizamos nossas potencialidades de formação e conhecimento, para podermos adequar nossos desejos internos às possibilidades de mudança na execução de nosso trabalho.
Dos quatro autores citados, pode-se concluir sem risco de equívocos, que, quanto menos nos valemos de nossos sonhos onde são trazidas manifestações de nossos desejos revelados ou não, menos chances teremos de melhorar nosso bem-estar e nos impulsionar na mudança requerida pelos sonhos. Os sonhos podem ser, de fato, nossos mais sinceros conselheiros, mais acreditados terapeutas, desde que aprendamos a compreendê-los, decifrá-los e segui-los.
Parafraseando Fernando Pessoa com seu magnífico verso “navegar é preciso, viver não é preciso”, pode-se dizer com a mesma força poética que “sonhar é preciso, viver não é preciso”. Ou então se sucumbe! O sonho dormido ou acordado é a válvula de escape da pressão diária da vida de cada um.
Um relegado desempregado com família para sustentar, sem onde morar, à mercê de governos discricionários, misóginos e corruptos, resta-lhe na angústia da privação recorrer ao sonho como forma de apaziguar por algum tempo seu sofrimento e agonia. Até que ele pegue o sonho com mão e sigam os dois para revirar a vida e encontrar uma vida melhor. Só ou acompanhado por outros como ele.
Desde que se creia que a realidade está dada, de fato, pouco há o que fazer. A não ser se sujeitar aos mandos e desmandos do mundo externo a nós. Caso, no entanto, passemos a seguir as revelações de nossos sonhos temos a faca e o queijo na mão para começarmos a aprender a tornar a tal realidade em nossa imagem e semelhança. D’Anna é um que mostra o caminho, Lênin foi outro que foi à luta, Sidarta mostra a riqueza e o poder dos sonhos, Galeano nos ajuda a ver melhor com os olhos bem abertos, e latino-americanos, sem as importações de outras culturas.
A nossa dura realidade do dia a dia nos alija dos sonhos, enquanto esses têm tudo para nos pôr de volta no caminho da realização de uma vida saudável, agradável e feliz. Não é o capitalismo, sob suas várias fachadas, que nos vai ditar como viver, mas sim os sonhos que irão nos liberar para construirmos um novo presente e futuro.
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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor e economista.