José Carlos Peliano (*) –
Assim de repente, do meio do nada, lá dos confins do inconsciente ou sei lá que nome dar a isso, veio pronto e acabado, sem ser chamado, como se dissesse olha aqui de onde nasceram os seus dias seguintes, do que foi representada e significada a sua vida até então. Tinha o apelido de Cacá, menino urbano, lá pelos seus 8 anos, cabelo à Príncipe Danilo, que vivia de casa para o colégio e do colégio para casa, às vezes de bonde, outras a pé, de uniforme e merendeira, paradas rápidas e eventuais por aqui e ali, mas sem estadias demoradas com os amigos no recreio e depois da escola, pois que moravam longe de onde ele tinha casa e sonhos.
Gostava de desenhar, ou para exercitar a imaginação, ou para encher o tempo, ou ainda para recuperar as imagens que mais gostava, ou tudo isso de uma só vez. Vai saber o que se passava, de fato, naquela cabecinha depois de tanto tempo! Mas também gostava de por à prova suas outras habilidades manuais. Construía casas com caixas de frutas vazias, dava uma de carpinteiro mirim, prenúncio de arquiteto de ideias para o papel e de mestre de obras porque ele mesmo punha em pé suas criações. Casas com quartos, sala, corredores, banheiro e cozinha. Como? No quintal ao fundo da loja-casa de seu pai, loja de frutas na frente e casa no fundo.
Cobria os telhados das casas com folhas de zinco que haviam por ali, quando faltava usava das laterais de madeira das próprias caixas de frutas. E ficava brincando de casa ali em baixo com suas duas irmãs, uma mais velha que a outra. Passavam muitas vezes o dia por lá, traziam seus pratos de almoço e lanche e comiam por ali mesmo. Uma casa dentro de outra casa, um sonho dentro de uma possibilidade de sonho, uma realidade de brinquedo dentro da realidade das ruas que se tornou dura com o passar dos anos. Mas Cacá ainda não sabia desde teste difícil da vida, apenas andava de calças curtas e botinhas de couro pelas imagens em ação, a imaginação.
Mas também andava por outras trilhas. Nas sextas-feiras à tarde, quando seu curso primário era feito de manhã, pegava o trem na estação perto de sua loja-casa, sozinho, e ia de Maria-fumaça para a fazendinha do avô a uma hora e pouco de distância. Ali era um sonho feito realidade. Dono de seus narizes, viajava no último carro do trem, no último banco ao lado da janela de onde via por dentro o carro inteiro à frente e a paisagem correndo pelo lado de fora.
Quando parava seus olhos pelo lado de dentro, observava os passageiros com atenção e detalhes e tentava adivinhar suas vidas, seus hábitos e costumes. Um passatempo que veio lhe dando asas à imaginação e a formar ou a expandir uma outra habilidade sua, já natural em si mesmo: o jeito de bater os olhos em alguém e ter uma impressão bem próxima de quem poderia ser a pessoa. Quando podia testava com a pessoa e via que chegava perto do que imaginara. Parava, no entanto, sua atenção por mais tempo nas meninas de sua idade quando o coração batia mais rápido e forte, daquele modo que não tem explicação, em especial quando elas retribuíam seus olhares. Sorria meio envergonhado, desviava um pouco, mas voltava e não tirava os olhos.
Descia na estaçãozinha com cara de desenho animado, depois que a Maria-fumaça interrompia o barulhinho bom da fornalha e soltava um grito mais que apito com um bafo imenso de fumaça como se fora uma baforada intensa de charuto. De malinha de mão ia a pé até à fazendinha passando pela ponte antiga de madeira sobre um rio de águas cor de barro.
Entre as tábuas da ponte já despontavam frestas, algumas mais largas que outras, que exigiam atenção e cuidado de quem passava. No caminho de terra até à chegada da fazendinha passava por vegetação diversa e às vezes por algumas vacas que pastavam silêncio e doçura, exceto aquelas prenhas ou de bezerros novos que costumavam se espantar e se colocar em posição de enfrentamento. Aí Cacá aprendeu aos trancos e barrancos a conviver com o susto e o medo. E principalmente com o como fazer para sair dessa.
Mas meu relato da vida de Cacá acabou indo longe demais, até a fazendinha. Deixemo-lo por lá num de seus sonhos então realizados e voltemos para seu jeito de desenhar. Cacá, já então bem vivido, depois de percorrer muitos mundos pelo mundo, muitas vidas pela vida, muitos sonhos pelo sonho, de repente se lembra de um desenho que fizera ainda em calças curtas. O mais bonito e bem feito deles, perdido algum dia num cantinho de sua meninice. Foi cópia de uma figurinha de um álbum que contava a história do Bambi. Para quem não se lembra Bambi era um veadinho personagem das histórias de Walt Disney.
Cacá escolheu logo a figurinha que mostrava Bambi pulando uma cerca de madeira escapando de um lugar de onde estava para alcançar a liberdade. Um bom prato esse para os “psi” da vida de plantão! Acredito que a primeira impressão não é muito difícil de obter do desenho. Nem mesmo de sua escolha. O que sobra acrescentar é que, de repente, essa imagem trouxe ao hoje velho Cacá o retrato estampado de sua vida inteira até então. Ela veio lá das entranhas do ser para ser o farol que escondido sabe-se lá onde iluminou toda a vida do menino. Que acompanha ainda hoje de mãos dadas o adulto que ficou.
Chama a atenção que o salto de liberdade de Bambi mostra não só o impulso para vencer o obstáculo, mas também e com certeza a disposição e a necessidade de superar as dificuldades para ganhar a satisfação e o dever cumprido. Na época as asas da imaginação de Cacá deram asas a sua imaginação para ganhar o mundo levando à frente seu desejo, vontade e a própria imaginação. De fato, a imaginação gera imaginação e já cria com antecipação o que se quer, como se quer e até onde se quer. Ela predispõe o depois criado antes. Mesmo que a gente não se dê conta.
E Bambi representou para Cacá seus instintos primitivos, originários, naturais, de vida liberta de cercas, de correntes, de mandos. Trouxe a expressão direta da individualidade à toda prova, a todo impulso. O próprio signo da democracia. As individualidades diferenciadas por natureza convivendo na igualdade da liberdade e da vida comum. Ser o que se é para conviver com todos em comunidade.
Nas palavras de Rosa de Luxemburgo: “por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”. A tarefa de Cacá é de continuar sua vida e sua luta para ajudar a si e aos outros a realizarem essas palavras, colocá-las em prática, como ele fez construindo suas casas de caixas de frutas, suas descobertas da Maria-fumaça e de suas viagens que ainda hoje encompridam e recriam sua imaginação. E como o seu desenho antecipou toda sua jornada!
Às vezes sinto que Cacá toma meu lugar quando lhe agrada o momento, outras se recolhe nas suas casas de caixas de frutas, na Maria-fumaça, na fazendinha ou sabe-se lá onde. Mas, uma coisa é certa, ele está sempre comigo.
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(*) José Carlos Peliano é poeta, escritor, economista.