"A vida é de quem se atreve a viver".


Os atores Anthony Hopkins, como Papa Bento XVI, e Jonathan Pryce, como Cardeal Brgoglio, futuro Papa Francisco, num diálogo imaginário sobre o mundo real do Vaticano.
Dois Papas, um diálogo imaginário enraizado no real

João Lanari Bo –

O inusitado diálogo entre dois Papas acabou virando filme, uma ocasião cinematográfica habilmente permeada de “licenças dramáticas”, como dizia Orson Welles, mas calçada nos dilemas e lutas intestinas que atormentam a Igreja Católica nessa alvorada do novo milênio.

Um filme que embarca no modo de produção do momento, desejado por nove entre dez cineastas, aquele voltado para filmes que vão circular sobretudo no “streaming”, a Netflix: atores bons (e caros), equipe eficiente, diretor experimentado e roteiro criativo completam a moldura desse mergulho imaginário na intimidade do poder no mundo eclesiástico, um mundo quase atemporal.

Sim, porque o tempo para a instituição que é a Igreja se mede no milenário, algo único na história da humanidade. Séculos e séculos de permanente construção intelectual, interagindo com os avanços da ciência e as turbulências do poder político, com outros sistemas religiosos e fraturas internas, do protestantismo ao evangelismo moderno – não é pouca coisa.

E eis que a Netflix, no alto dos estimados 15 bilhões de dólares, que investiu em conteúdo original em 2019 – cifra astronômica, justificada pelo acirramento da competição que se anuncia com a entrada no mercado da Disney, Apple TV e outros menos votados – resolve, enfim, investir em um filme-fábula sobre um dos mistérios mais bem guardados da Igreja, a transição papal.

Uma produção ousada (a Capela Sistina, por exemplo, foi inteiramente reconstruída como cenário, já que o Vaticano não permitiu filmagens nos seus domínios) trouxe o duelo interno da Igreja - tradicionalismo erudito de Bento XVI versus populismo sincero de Francisco - para o espaço ameno do espetáculo, contrapondo personalidades e particularidades de ambos Santos Padres em um diálogo, digamos, humano – “não sou infalível”, confessa Bento a Francisco, ao confidenciar sobre sua próxima renúncia, derrubando de passagem o dogma da infalibilidade papal.

A reedificação desse diálogo imaginário, que ninguém sabe se existiu, mas que todos intuem verossímil, é o fio condutor que tece a trama da história. O ponto crítico da conversa – na pista sonora ecoa o nome “Maciel”, menção ao Padre mexicano Marcial Maciel, predador entre predadores sexuais, protegido por João Paulo II e Bento XVI, que desistiu de processá-lo canonicamente em função da idade avançada do padre e convidou-o a uma vida reservada dita de "oração e penitência" – foi obliterado na mesma pista sonora pelos realizadores do filme, relegado ao mistério eterno, uma verdade que “é melhor nem saber”.

Esta a ferida narcísica em que se debate a Igreja, a questão do disseminado abuso sexual perpetrado pelos sacerdotes, encoberto ou ignorado por séculos, que Bento não foi capaz de enfrentar – e que desabou nos braços de Francisco. Uma rápida consulta à internet revela a amplitude da questão e as dificuldades internas que se antepõem à autoridade papal. Não é a única a afligir a consciência dos clérigos de boa vontade que pelejam pela sobrevivência da fé cristã, certamente, mas sua extensão é inédita.

Completam o quadro os flashbacks da trajetória político-espiritual de Francisco, pontuada de atos corajosos e às vezes duvidosos nos anos sombrios do militarismo argentino, tema que a Netflix já havia visitado, em “Pode me chamar de Francisco”, da produtora italiana Taodue.

Francisco, o Papa, ingressou, à revelia ou não, na sociedade do espetáculo.

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Nota do Editor:

O filme Dois Papas é um drama biográfico de 2019, dirigido por Fernando Meirelles e escrito por Anthony McCarten, com base na obra de McCarten, O Papa. É estrelado por Anthony Hopkins e Jonathan Pryce. Teve estreia no Festival de Cinema de Telluride (Colorado, EUA) em 31 de agosto de 2019 foi lançado nos Estados Unidos em 27 de novembro de 2019, no Reino Unido em 29 de novembro de 2019, e em streaming digital em 20 de dezembro de 2019, pela Netflix. Atualmente está em cartaz nos cinemas brasileiros.

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