José Carlos Peliano (*)
Ontem, 11 de dezembro de 2019, visitando o canal Curta da TV fechada deparei com o programa Cineastas, onde encontrei Marcelo Gomes falando sobre sua rica filmografia, em particular Cinema, aspirinas e urubus, de 2005, o qual já havia assistido anos atrás. Estava, de fato, de passagem pelos canais para ver se encontrava alguma coisa interessante para prender os olhos de minha atenção. Acabei ficando por ali. Mais que interessante, me enriqueci com os flashes e comentários da rica e elaborada experiência cinematográfica do diretor.
O ator brasileiro do filme, João Miguel, baiano de Salvador, a quem já admirava de outras participações em cinema e TV, me chamou mais uma vez a atenção. Seu desempenho na película é irretocável, um nordestino reservado, duro como a seca, solitário feito um mandacaru, mas de olhos atentos à terra e à paisagem desolada da região. Aliás é o que resta a muitos que ainda vivem ali respirando poeira, calor, calangos, um ar sem vento e tufos de folhas secas. E por isso mesmo é um forte, embora marcado para sobreviver, assim resistente, destemido, sertanejo da gota serena. Um ser tão persistente, de um sertão renitente, quanto um rio seco à espera de gotas de uma chuvinha que algum dia promete chegar.
Nessa toada da vida difícil, ao avesso, me detive num comentário feito pelo personagem Ranulpho de João Miguel, em conversa com o personagem estrangeiro Johann, papel do ator Peter Ketnath, em um flash do filme, que pode ser resumido no duro substantivo desolação, extraído da cena. Referia-se João Miguel ao cenário agreste visto de um lado e outro da estrada por onde iam na camioneta. Logo, me vieram em sequência três outros substantivos que juntei àquele para uma compreensão para mim mais detida do comentário.
Ante à desolação por todos os lados das condições de sobrevivência, de trabalho, de amanhã, o que leva por fim ao retirante sair dali atrás de um refrigério, uma água fresca, uma sombra com asas, um sorriso aberto? Imaginei etapas de um prolongado e tortuoso convencimento para cada retirante, algo parecido ao texto de Graciliano Ramos, Vidas Secas, já comentado brevemente por mim aqui neste site em Uma passagem por Vidas Secas e um olhar para o Brasil.
A desolação deve provocar estranhamento que leva ao rompimento que termina no abandono. A dura saga de todo nordestino que vai para outros alvoreceres junto aos filhos, aos bichos de estimação, aos exíguos pertences, às poucas lembranças livres de tristeza, apatia e sofrimento.
O homem é gregário por natureza. E ela está aí para lhe dar guarida, asas, energia, trabalho, companhia, respeito. Quando ele nasce, ela já o espera de braços abertos com seus segredos, ensinamentos e aprendizados. Uma sala de aula viva que o acompanha em todas as séries de idade, profissões e formação de personalidade.
Difícil separar o que vem da natureza e o que se recebe pelas relações sociais e familiares. Há uma inter-relação natural, variada e progressiva. Sem uma, as outras definham e perdem sentido. Quando isso não acontece advém a barbárie, o fascismo, os desmandos, a involução, os desertos, a desolação.
A falta de relação necessária, vital e frutífera com a terra gera a desolação. Uma falta de cuidado, de contato, de conhecimento, de entendimento, de acolhimento. Seja por ignorância, falta total de conhecimento, por carência, inexistência de recursos para manejo do solo, seja por desprezo, vindo pela entrega ao deus-dará ou pela ganância sem pouso. Mas não é por falta de soluções.
As experiências que conheço em Israel e noutras regiões do globo pelo aproveitamento agricultável do deserto, e aqui mesmo no país, através da permacultura, isto é, da cultura permanente, e através da agricultura regenerativa, cuja madrinha é Marsha Hanzi no semiárido nordestino, trazem possibilidades e resultados seguros e benéficos de adequação e reaproveitamento do solo, por mais inóspito que seja. Certamente haverá outras propostas que levem a objetivos semelhantes.
O sertanejo, então, diante da desolação permanente de seu lugar acaba sendo levado ao estranhamento de suas duras e cruas condições de trabalho e vida, as quais mais cedo ou mais tarde o leva ao rompimento sem retorno dessa situação e, por fim, ao abandono inevitável, forçando-o a se retirar só ou com a família para onde sabe-deus o que irá encontrar.
Diante da desertificação que toma conta de boa parte do planeta, exatamente por descaso de ações de iniciativas pública e privada e por penúria de recursos para melhoria da terra degradada, seja ela qual for, o que leva à degradação ambiental, é que se torna urgente e inevitável recuperar os solos do planeta para que não fiquemos à mercê da falência da vida e futuro.
Mas, apesar de tudo, o sertanejo é um forte, mesmo algum dia se retirando para onde o sertão vire mar. Meu poema Sertão, do livro Dois Oceanos, premiado no Concurso Bolsa Brasília de Produção Literária em 1998, descreve a saga sertaneja.
Sertão
Sertão é carregar o sol nos ombros dos dias
até que ele voe e pouse em um pé de pau
Sertão é beber a seca com o coité das mãos
e levar para as veias a terra vermelha
Sertão é semear reza no chão lenhado de sede
e colher cactos e carcaças de animais empoeirados
Sertão é agarrar o ar com o corpo ar queado
e avistar com os olhos sem fundo
as asas de alguma brisa perdida
entre o bafo quente do rio evaporado
e o calango sem sombra e sem cor
Sertão é o ter o tamanho da intempérie
e ir contra o tempo para tê-lo às avessas!
Sertão é viver a vida de costas e ser não sendo
e não sendo ser além da conta da vida
Sertão é ser de menos para ser demais
______________
(*) José Carlos Peliano é poeta, escritor, economista.