José Carlos Peliano (*) –
Reli Graciliano Ramos em seu épico Vidas Secas com o cuidado de detetive em busca de resquícios datados e marcas ou sinais de impressões digitais literárias. Procurei nas entrelinhas o que levara o autor a escrever uma novela densa e rascante, em texto não muito longo, ao contrário de outras ficções de época ou evento.
Não passei pelo prefácio do renomado crítico Álvaro Lins, indo direto ao mundo da seca descrito na história de Graciliano. Não quis me sugestionar nem me prender a situações aos olhos de Álvaro. Confesso que levei mais tempo na leitura nem tanto pela pesquisa de detetive, mas por conta da crueza do texto que me deixou empoeirado, sedento e fatigado como os personagens. Como se eu fora mais um entre eles vivendo aquela vida sem eira, nem beira e saída. Qual boi doente, esquelético, de couro em feridas de sol, encurralado entre o chocalhar de uma cobra ansiosa à frente e urubus famintos rodeando à volta. Parei várias vezes ao longo da leitura para desligar a mente e me refazer do impacto das imagens que me acercavam.
Pois, foi esse o primeiro sinal da grandeza da história. Levar o leitor a suas entranhas e deixá-lo à sorte do enredo. A descrição de cenários da seca, de escassez de alimento, fome, sede, desesperança, deixa-nos agoniados em busca do final do capítulo ou de algum parágrafo salvador para ver se alguma coisa melhor acontece ou que não piore mais as coisas.
Lá pelas tantas, no entanto, me dei conta que Vidas Secas retrata uma situação ainda comum no nosso país, guardadas as proporções e situações. Não só na aridez do interior nordestino, mas também noutras regiões onde a vida aflita, dura, em corda bamba e repetida, impinge a seus habitantes a carga e os grilhões de uma viagem sem bonança, só em sonho quase sem chance na mente ou impossível de crer.
Foi daí que meus olhos se voltaram para os aspectos mais próximos à jornada de vida de milhões de brasileiros que volta e meia se decompõe e se esparrama em chão lenhado de recuos, quedas, brutalidades, violência, letargia, impotência e medo. Da leitura do livro às notícias vistas pelas mídias sociais havia muita semelhança. Já que a grande mídia, da vênus platinada, passando pelos jornalões e revistas, aos demais canais mercadores de ilusões, faz de um sonho fabricado com remendos grotescos nossa imagem e dessemelhança. Essa miragem tosca se esfarela no deserto do dia a dia.
A lâmina da seca corta os cenários nos capítulos por todos os lados. Os bichos só de ossos à vista pela pele esturricada ou em carcaças à beira dos caminhos espinhentos ou rios evaporados. As águas transformadas em poças e lagos de barro ou filetes de líquido amarronzado. Plantas nenhuma a não ser mandacarus envergados ou retorcidos pelo braseiro do sol. Sobreviver? Há que se ressecar como as palhas e gravetos para não depender da providência porque nem reza, bênção e amuletos ajudam mais.
E essa trágica situação persiste porque é produzida pelos seus donos proprietários das terras. A indústria da seca mantém o inferno na terra para que o refrigério monetário venha dos apaniguados pelos contatos de dependência de interesses que mantém com o governo. A venda da imagem destruída carreia auxílio das instituições para que ajustes aqui e ali sejam realizados e alguma melhoria apareça. Só que o tempo passa e nada aconteça de substantivo. Pelo contrário, o adjetivo da desgraça permanece.
Sofrem os que dependem unicamente de trabalho para sobreviver, os agricultores, mateiros, peões, vaqueiros, suas famílias, enfim toda a sorte de gente que tenta se sustentar onde a seca toma lugar. E muitos aí ficam por resignação porque ir para as vilas e cidades fazer o quê? se sabem quase nada da vida e dos ofícios urbanos.
Fora o clima, a produção e a reprodução da seca são agravadas pelos proprietários das terras, pois subjugam seus serviçais em condições insatisfatórias de trabalho, saúde, renda, proteção social e subsistência, embora cobrem o cumprimento das obrigações.
Os instrumentos de trabalho e produção, em geral, não dão cumprimento dos serviços. Assim, não se consegue debelar os estragos da seca natural, tampouco melhorar o estado anterior da terra. Cobranças então vêm de todas as formas. Graciliano cita a mordaça de uma atitude ainda comum que é adiantar o minguado salário para depois cobrar com juros o tempo do empréstimo e os eventuais atrasos no retorno, prendendo ainda mais o desgraçado e sua família àquela vida sem vida.
Esse trágico quadro de dependência econômica vem junto com formas veladas de escravidão e racismo travestidos de indiferença pelas condições de vida e trabalho dos mais pobres, necessitados, retirantes, sejam pretos ou brancos, domésticas ou operários, ambulantes ou moradores de rua. Cunhados pela elite dominante como vagabundos, preguiçosos, marginais, os “nordestinos”.
Esses seres sofridos, condenados a viverem secos, no ninho da seca, como bichos, fora e à margem da sociedade dita civilizada, acabam por assimilarem a imagem que deles fazem os “civilizados”, mandantes, escravocratas, nas palavras duras de Graciliano “quem é do chão não se trepa”, pois que seguem por toda a vida sob “o voo negro dos urubus” sempre perseguidos pela “desgraça ... em caminho”- pp. 135, 44 e 59, Vidas Secas, Martins Editora, São Paulo, 31a edição, 1973.
Sempre retirando de um torrão de seca a outro em busca de algum refrigério vagam pela terra como nômades, donos de coisa alguma, nem da alma já ressequida como o pé de pau minguado e insosso à beira do córrego sem água e esperança. Esse caldeirão infernal é encontrado sob fogos diversos em favelas, cortiços, debaixo de pontes e viadutos, ajuntamentos nas margens de rios, em todas vilas e cidades país afora. Um país de fraque e cartola com os pés atolados na lama.
Sobra a danada doença da fé, o sonho mascado e entortado na cabeça, que resiste em rastejar enfraquecido com os calangos e escorpiões ao lado dos tropeços seguintes, tal qual brada meu poema “o vaqueiro e o galope” feito em homenagem ao filme Romance do Vaqueiro Voador de meu saudoso amigo Manfredo Caldas.
o vaqueiro e o galope
segue o rio seco espremido de terras vermelhas
leva restos de pó, carcaças e desesperanças
uma procissão serpentina de rezas e novenas
muitas fotos sem foco e cor de Padre Cícero
arreios rachados de zarolhos sóis arregalados
alguns burros em pele e osso mascando os dias
chapéus antes de couro agora de suor e cansaço
esporas amontoadas no chão de terra esfolada e batida
vá queiro! vá queira ou não queira
vá mundão afora ajuntar seu gado
em terras onde a terra se abra e lhe deixe a flor
vaqueiro, vá queira ou não queira
vá que eira nem beira vai aqui
vá zunindo feito pé de vento na caatinga
no lombo de burro em cascos de capeta
vá à cidade grande invernar gado grande
com a sorte grande que Deus levou daqui
vá queiro! vá queira ou não queira
vá no galope de azulão seu burro de fé
seu burro de sabedoria da peste encarnada
e da gota serena que a tudo apressa e rende
vá queiro! no galope da noite e do dia
vá juntar o gado nas casas empinadas arriba
arriba umas das outras até arranhar o céu
vá queira ou não queira chegar perto do céu
e lá chegando lance o aboio com o coração
dê sinal ao mundão de gado de casas empinadas
e de outros vaqueiros retirados do sertão
que prepara seu voo consagrado com azulão
voe até o azul do céu perder de vez a cor
o vermelho vivo brotar que nem mina d’água
de seu corpo aboiado e do galope de azulão
vá queiro! vá queira ou não queira ser voador
o mundão de casas empinadas quer seu dom
de abrir veredas e levantar poeira
marcando o chão com as patas de azulão
aboiando o som da vida agreste e avoante
vá queiro voador! vá queira ou não queira
vá levar ao céu sua força, fé e ousadia
com a mulher talhada no arfar do peito
e a vida e a morte suas irmãs de valentia
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(*) José Carlos Peliano é poeta, escritor e economista.