José Carlos Peliano (*) –
Ainda jovem, saindo da Faculdade de Economia, em 1970, fiz parte de um programa análogo à época ao então Projeto Rondon para viver uma experiência didática e participativa de um mês no município de Tefé, Amazonas, juntamente com colegas de outros cursos. Era o Campus Avançado da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Fomos todos em avião da FAB, um bimotor usado, mas em condições razoáveis de funcionamento e conservação. Sua rota sobre a floresta amazônica até o destino foi carregada de emoção, encantamento e surpresa.
Era a primeira vez que todos nós passávamos pela experiência, ainda mais vista de cima, curiosos com o emaranhado de árvores milenares, trançados irregulares de cursos d’água, voos de aves agrupadas e névoas esparsas em certos trechos. Ah! Um verde deslumbrante! Um mundo vegetal exuberante abrindo seus pulmões para brasileiros, latino-americanos e estrangeiros. O chamado pulmão verde da humanidade.
Súbito, a surpresa, observei sobre as asas filetes de óleo escorrendo de alguns parafusos da fuselagem. Eles tremiam quase soltos sem qualquer fixação a não ser possivelmente o resto de voltas das roscas respectivas que ainda os seguravam de algum jeito. Corri a avisar um dos pilotos e ele sorrindo me disse que aquilo era normal, pois já estavam acostumados, sempre acontecia, mas não passava disto até então, garantiu. Iriam verificar no pouso, como sempre faziam, reapertar os que precisavam e por certo (?) aguentariam mais um tempo mesmo escapulindo das roscas de vez em quando.
Um princípio de incômodo tomou posse de mim e de alguns colegas juntando o fato de não estarmos em terra firme, com comunicação precária com torres existentes à época, voando sobre uma floresta densa, com um avião faltando reaperto em seus parafusos de onde vertia óleo, logo de onde, das asas! Ao mesmo tempo ficava nitidamente a impressão de que a equipe de voo era realmente corajosa, embora talvez arriscando a vida numa atitude de apostar na sorte, dadas situações anteriores semelhantes que não levaram ainda a nada mais sério.
Primeiro ensinamento: atenção precária e insuficiente das autoridades aeronáuticas de então aos equipamentos e equipes de aviadores da FAB, muito embora tivessem fibra suficiente para enfrentarem situações difíceis e perigosas. Somava a isto a negligência com a vida de outro, pois as aeronaves voavam à época sobre a floresta para levar pessoas em especial aquelas de saúde precária ou em risco aos hospitais de Manaus.
Após os primeiros dias, meu grupo de economia chegou à conclusão, depois de conhecer de perto as atividades da cidade, que o principal problema ali era o consumo restrito dos moradores. Viviam basicamente de farinha de mandioca e pescado de lá mesmo. Quando vinha alguma coisa diferente de Manaus, a dificuldade era ter dinheiro suficiente para adquirir os produtos a preços mais altos. A circulação monetária era mínima, a maior parte nas mãos de um mercadinho e da prelazia. Aliás, o barco que se encarregava do transporte era dos religiosos. Assim, o jeito era conscientizarmos os moradores da necessidade de eles se reunirem para aquisição eles mesmos dos víveres básicos em Manaus, sem intermediários. Era a única saída.
Utilizamos um velho cinema desativado para reunir com os moradores e informar-lhes como seria uma cooperativa de consumo, funcionamento, atribuição de seus membros, etc. Fizemos talvez umas quatro ou cinco reuniões com um número bom de presentes em todas elas. Adultos e jovens, homens e mulheres, muitos descendentes diretos dos indígenas. Participação bem concorrida de todos. Eu era o responsável para subir ao palco improvisado e explicar a eles todos os detalhes da cooperativa bem como responder perguntas. Nunca tinha feito isso antes, mas acabou dando certo.
Segundo ensinamento: no final da última reunião me procurou um senhor de idade, pescador, pele dura de sol, e me disse que tinha gostado muito das exposições, de meu comprometimento com o que dizia e queria que eles entendessem, e que confiava muito em mim. Por isso mesmo, adicionou, gostaria que eu lembrasse de todos eles quando voltasse e, se um dia, eu estivesse no governo, eu ajudasse a melhorar a vida deles de algum modo. Por que? Porque, completou, a cooperativa iria durar pouco tempo uma vez que a prelazia e o mercadinho dariam um jeito de inviabilizá-la.
Não deu outra, tempos depois soubemos que a cooperativa chegou a ser criada, pelo menos informalmente, durou menos de um ano, tendo tudo retornado às mãos dos donos efetivos da cidade. Embora tivesse eu feito minha parte, me senti derrotado. Ecoou por muito tempo em meus ouvidos o velho senhor dizendo: aqui é “Tefé”, mas a prelazia e o mercadinho não “têm fé” na igualdade e solidariedade com seus habitantes!
O terceiro e último ensinamento veio de um timoneiro de barco. Todos tínhamos ido a Manaus, após uns dias em Tefé, para conhecer a cidade. Fomos de FAB novamente com os mesmos parafusos das asas trepidando e voltamos no barquinho da malária. Era o pessoal da área de saúde de Manaus que percorria todo o rio Amazonas levando medicamentos para ministrar ou vacinar o pessoal ribeirinho.
Passamos por Itacoatiara quando o farol do barco queimou e não podíamos navegar à noite. O que fazer? O piloto sugeriu comprarmos a mais potente lanterna que encontrássemos para servir de substituta. Fui o primeiro a me colocar perto dele como seu ajudante com a lanterna acesa iluminando o rio mar. Lá pelas tantas da noite ele me alerta para iluminar não à frente como fazia, mas mais à direita. Lá estava um grande tronco de árvore boiando vindo pela corrente em direção ao barco e com iminência de atingi-lo. Logo, o timoneiro mudou de direção e escapamos por pouco.
O timoneiro já de meia idade enxergava melhor que eu nos meus vinte e poucos anos além de conhecer as manhas das águas pelas palmas das mãos e pelos olhos da floresta. Me disse então que navegava desde jovem e conhecia todas as retas, curvas e remoinhos daquela estrada d’água de dia ou de noite, com chuva ou com sol.
Aprendi que a Amazônia é um mundo imenso, exótico, maravilhoso e ainda pouco conhecido, embora já muito explorado pelos gaviões do asfalto com suas sacas de dinheiro e ganância sem tamanho.
Mas aprendi também que o governo tem o dever e a obrigação pelo bem dos amazonenses, dos brasileiros e da humanidade, de cuidar efetivamente da região que nos pertence, não largar ao deus-dará tampouco à sorte e coragem dos que por lá vivem ou transitam. Sem falar nos predadores que só querem tirar dela os recursos, sem devolver proteção e cuidado. A terra nasceu primeiro que nós e nos deu guarida. Temos de olhar por ela e protege-la. Afinal, é nossa casa.
Como diz Thiago de Mello: “Os povos indígenas da Amazônia vivem em íntima harmonia com a natureza, são amigos do Sol e seguem as conversas das estrelas”. E a tratam como amiga e irmã.
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(*) José Carlos Peliano é poeta, escritor e economista.