"A vida é de quem se atreve a viver".


Sylvia Cyntrão cita Saramago para definir a poesia de Luís Turiba: “Há esperanças que é loucura ter, Pois eu digo-te que se não fossem essas eu já teria desistido da vida”
Resenha: Os Desacontecimentos de Turiba

Sylvia Cyntrão (*) –

“Se podes olhar vê, se poder ver, repara.” (Do Livro dos Conselhos). Essa é a epígrafe que abre a narrativa do livro Ensaio sobre a cegueira do escritor prêmio Nobel José Saramago. Se eu fosse sugerir uma epígrafe para a poesia de Luís Turiba, essa seria a perfeita. Porque Desacontecimentos [Editora 7 Letras] é isso: um olhar que se apropria, transmutando a realidade por meio da linguagem estetizada, em produto palpável também pelos outros pelos sentidos, mas sempre a partir da visão.

Luís Turiba não é de hoje (para privilégio de seus leitores). Não é de hoje que escreve, não é de hoje que atua, não é de hoje que brilha. Como não é de hoje que o conheço, fica fácil dizer que ele persegue naturalmente a poesia das coisas. E digo coisas de propósito, não porque não encontre palavra mais significativa, mas porque essa é a palavra mais importante no sentido fenomenológico da existência acontecida. Olhando para as coisas, Turiba, bem no caminho ensinado por outro mestre – nosso – Manoel de Barros... faz, no entanto, desacontecê-las.

Na sessão Desacontecimentos sentinelas, o poema “Atento” sublinha o processo de desconstrução, quando nos diz “tento me desentender da realidade/ que pula me atentando sem parar”. E é aí que se dá o momento da criação – quando a poesia também persegue o escritor e ele se põe a falar. Em meio à confissão “tento tento, tento tento/ e nada nada nada: fico atentado”, o turbilhão existencial enreda o tempo desse poeta-agente histórico e nos faz uma vez mais citar Saramago em sua ética pro-humanidade, quando enuncia pela voz de um personagem “Há esperanças que é loucura ter, Pois eu digo-te que se não fossem essas eu já teria desistido da vida”. Essa é a ética semelhante que Luís Turiba propõe, como uma plataforma de salto: “tento entender que o hoje veio do ontem/ e o amanhã será outro tempo nesse/ jogo do pêndulo da história de tentativas.”

A partir do sofrimento (contido) de ter recebido um “atentado nas minhas esperanças”, o salto do entendimento acontece e o eu-lírico ilumina sua trilha: “viver é nosso maior templo/ por isso tento/ enquanto há tempo de continuar tentando”. Em linha com a amorosidade necessária à sobrevivência, o conjunto da sessão Desacontecimentos eróticos aponta para o que eu chamaria de coluna vertebral da poética de Turiba pela celebração da energia vital. Um dia escrevi sobre e para seu (com Luca Andrade) livro "Inocentes Eróticos" que “Uma vida erotizada é uma vida que se move. Eros mantém a alma em movimento... no corpo físico dos amantes”. (...) “Com ele as relações serão sempre “uma relação com a alteridade com o mistério, ou seja, com o futuro, com o que está ausente do mundo que contém tudo o que é... segundo ensina Bauman.”

É essa também uma questão do “olhar”, agora não só o do criador, mas do “outro” que o faz desvelar-se ao leitor em preciosas – e precisas – texturas poéticas. É preciso ler Desacontecimentos em mergulho vertical (cruzem a superfície horizontal da linha do verso).

As imagens que tecem cada página contêm elaborações teórico-filosóficas perspicazes sobre o sujeito contemporâneo e se apoiam na ampla concepção social do homem: uma concepção que vê os seres de linguagem que somos, mediados na e pela interação com os que nos acompanham – especialmente na sessão dos Desacontecimentos acontecidos, que nos promove doces encontros com Rita Lee, Jorge Amado, Houaiss, Tancredo, Beatles, London, London e outros tantos arredores. Digo que muito me faltaria ainda comentar do que li e senti, mas aí teria que escrever uma tese (fica a dica pros universitários). Concluo com os versos da canção de Arnaldo Antunes sobre o que considero a síntese de sua poética, meu amigo.

O seu olhar me olha

o seu olhar é seu

o seu olhar

melhora o meu

Luís Turiba, o seu olhar melhora – muito – o nosso!

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(*) Sylvia H. Cyntrão é Professora Titular do Departamento de Teoria Literária e Literaturas (TEL), da UnB. Pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Literatura-Póslit. Líder do Grupo de pesquisa Poéticas contemporâneas – Vivoverso. Líder do Grupo de pesquisa Textualidades contemporâneas: processos de hibridação.

http://vivoverso.blogspot.com

http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/4802716833034553

http://textualidadescontemporaneas.blogspot.com

http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/3519795257253272

(*) Este artigo foi publicado originalmente no site:  http://www.mallarmargens.com/

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