José Carlos Peliano (*) –
Na virada dos setenta para os oitenta, voltava aos Estados Unidos para participar de um encontro internacional de pesquisadores interessados em estudar as modificações tecnológicas que começavam a acontecer na indústria automobilística. Tratava-se basicamente das inovações microeletrônicas na linha de montagem.
Começavam a ser usados cada vez mais comandos numéricos computadorizados e robôs pelo lado dos maquinários e comandos e alterações nos postos de trabalho, não mais em sequência direta, mas em ilhas de confecção, tipo processo “just in time”. Por certo era um concatenamento sequencial mais dinâmico e eficaz para a produção final, mas por isso mesmo um poupador de empregos e funções de todos os tipos, além de efeitos prejudiciais nas relações de trabalho. Ganhavam mais uma vez as montadoras, perdiam os operários.
Estudávamos no Brasil, eu e colegas do IPEA, onde então trabalhava, DIEESE e consultores estrangeiros, entre eles Hubert Schmitz, Benjamin Corriat, Gonzalo Falabella e Giovanni Dosi, o que ocorria basicamente na Ford e Volkswagen, para ser comparado com o que se passava em montadoras de outros países. O estudo foi mais tarde publicado pela Editora da UnB, em 1992, Automação microeletrônica na indústria automobilística brasileira.
Após uma sessão do encontro, saio eu e meu saudoso amigo falecido José Ricardo Tauile, economista e professor do Instituto de Economia Industrial da UFRJ, atrás de um lugar para jantar, enquanto passeávamos para conhecer um pouco mais dos arredores em meio às largas ruas, shoppings e avenidas suntuosas e iluminadas da capital do Estado de Massachusetts.
Pois foi nesse caminho até o restaurante que me caiu a ficha. Ao ver prédios altos, arranha-céus a perder de vista, cada um mais belo e rico que o outro, tanto em construção e materiais, quanto em arquitetura e acabamento, me ocorreu entender visualmente a riqueza americana em contraste com a pobreza latino-americana em particular, como a africana e asiática em geral. O que sobrava ali em qualidade, abundância e deslumbre, faltava nas demais regiões e países, pobres em meios de vida, trabalho, produção e moradia. Brindamos, então, com boas doses de whisky a nossa ousadia em defender os ideais da igualdade de direitos de todos os povos independentemente de suas origens.
O choque visual reverberava com impacto semelhante em mim e Tauile. Conversamos, então, muito a respeito, o que nos indicou e reforçou caminhos comuns a percorrer, não só em posições ideológicas, como também em iniciativas de trabalho. Chegamos a continuar escrevendo textos sobre as inovações tecnológicas juntos e separados para nossos órgãos de origem e para consultorias à Organização Internacional do Trabalho.
O que visualmente nos confirmava ali era que a Pax-Americana em todo o mundo, nada mais era do que a manutenção da soberania daquele país nas relações com os demais países, excetuados os do socialismo de estado, nas áreas comercial, econômica, científica, tecnológica, militar e política. Resultava em decorrência que até mesmo as relações sociais acabavam sendo envolvidas pelas demais. Em algumas regiões, entretanto, resistia brava e alegremente a cultura regional, especialmente em rincões latino-americanos.
Decorria dessa breve visão sobre a suntuosidade da riqueza em contraste com a pobreza endêmica, a noção básica, imediata e estridente da desigualdade. Polos extremos e desiguais convivendo em meios diferentes ou no mesmo meio econômico e social. Uma questão já velha conhecida e estudada principalmente no trato da economia e sociologia. O domínio econômico dos Estados Unidos no mundo, secundado por outros países desenvolvidos, há bem tempo se aproveita, sustenta e reproduz as muitas formas de pobreza nas várias regiões nas quais aquela nação age e interfere econômica, política e militarmente. A globalização tem ajudado a manutenção e aprofundamento desse status quo.
Os braços econômicos desse domínio americano, mas também de outros países economicamente fortes, são suas companhias multinacionais com filiais mundo afora, diretamente ou com prepostos e repetidores nacionais. Seus lucros obtidos são retirados dos locais mais pobres onde se encontram produzindo e remetidos às sedes, americanas umas, nacionais outras. Esse descompasso traduz em termos sumários o desequilíbrio de recursos entre os ricos, que acumulam, e os pobres, que são explorados. O vírus e a doença permanentes da desigualdade.
As manifestações populares e revoltas de hoje em países como Chile, Equador, Haiti, Bolívia, além da crescente insatisfação social presente aqui e ali na Colômbia, Brasil, Uruguai, entre outros, evidenciam mais uma vez o descompasso entre a manutenção dos privilégios dos grupos econômicos mais poderosos e seus representantes ou contratados e a redução e retirada dos direitos sociais da maioria esmagadora mais pobre da população.
Enquanto o modelo capitalista de produção persistir em sua roupagem neoliberal predadora, os estopins da insatisfação, manifestação e revolta popular estarão potencialmente sendo acesos. Provavelmente nunca chegaremos a viver numa Boston, mas certamente poderemos melhorar bastante nossos meios de vida e trabalho e quiçá sermos mais iguais que nossos antepassados.
O pior é que a receita neoliberal conservadora, predatória e ultrapassada tende a destruir o próprio sistema capitalista onde ela se assenta. Já previa isso o velho e sábio Marx. Com o aumento progressivo da desigualdade, as empresas empanturradas de lucros, a maioria delas com aplicação no mercado financeiro e não na produção, os trabalhadores com direitos reduzidos, salários menores e desemprego aumentando, quem irá adquirir os produtos das empresas?
Henry Ford, o criador da Ford Motor Company, a primeira montadora mundial, foi sábio em afirmar que a redução de salários de seus empregados ameaçaria a sua empresa na venda de seus próprios automóveis.
Com a redução da demanda e da receita, as empresas terão minguados seus lucros. Como irão sustentar seus recursos aplicados no mercado financeiro se irão reduzir os aportes habituais? Os tributos igualmente sofrerão queda porque as vendas irão se reduzir ao mínimo básico, as rendas das famílias e pessoas idem, daí a dívida pública anterior não terá como se pagar, terá de ser rolada. A garantia do Tesouro irá por água abaixo.
E aí? Guedes e equipe já terão ido provavelmente se esconder alhures! Só não vê quem não quer ou finge entender o que não entendem ou que, mesmo assim, querem ganhar enquanto a coisa ainda anda. Depois é o longo prazo, quando Keynes nos disse que aí estaremos todos mortos. Inclusive os neoliberais de plantão.
O jeito é chamar o Luiz Gonzaga Belluzzo, Luciano Coutinho e Maria da Conceição Tavares, meus mestres e amigos, para ajudar a reconstruir e restabelecer o vigor, a pujança e a soberania da economia brasileira!
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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor e economista.