Dioclécio Luz –
Na sexta-feira, dia 23 de abril, ao discursar na Cúpula dos líderes sobre o clima, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que até 2030 acabaria com o desmatamento ilegal no Brasil. Também disse que sua meta é neutralizar as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) até 2050. Só uns poucos jornalistas questionaram essas promessas que, como se sabe, não têm nada de concreto. Afinal, isso está muito longe da alçada desse presidente do Brasil.
Talvez a razão para a fé desse jornalismo na autoridade esteja no departamento comercial da empresa. Talvez as finanças estejam determinando a linha editorial desses que fazem a notícia. Uma questão ética?
O leitor/telespectador talvez se surpreenda ao saber que o jornalismo tem alguns princípios – éticos, inclusive. Sim, há um código de ética para a sua prática. O artigo 12, por exemplo, estabelece que o leitor/telespectador não pode ser levado a confundir publicidade com matéria jornalística. O que é propaganda não é jornalismo. O que intencionalmente o “jornalismo” omite ou manipula não é mais jornalismo.
O departamento comercial está influenciando o jornalismo quando a entrada de dinheiro no caixa provoca mudanças na linha editorial. Vale o conselho de Bob Woodward sobre o caso Watergate: “follow the money” (siga o dinheiro). O leitor/telespectador deveria pensar nisso. Talvez ele esteja consumindo outra coisa que não é jornalismo.
A questão vem a propósito do dinheiro que o governo de Jair Bolsonaro despejou nos veículos de comunicação com a campanha de vacinação contra a Covid-19. Intitulada “Brasil imunizado, somos uma só nação”, ela foi veiculada de 16 de março a 6 de abril deste ano. A Lei de Acesso à Informação permitiu saber que nesses 20 dias, o governo gastou R$ 17,8 milhões para promover a campanha em jornais, novelas, humorísticos, filmes exibidos na TV, nos programas que fazem o “jornalismo de sangue” (ou “programas policiais”), reality show (Big Brother Brasil), “revistas eletrônicas” (Fantástico e Domingo Espetacular) e até programas que tratam da criação de cachorros e gatos (Encantadores de pets, na Band).
A TV Globo da família Marinho, como sempre, levou a maior parte da bolada: R$ 4 milhões. Em seguida, veio a TV Record de Edir Macedo, R$ 3,9 milhões. Em terceiro lugar o SBT de Sílvio Santos, que recebeu R$ 3,8 milhões. Isso mostra que televisão brasileira é o melhor negócio do mundo.
Qual a empresa fatura R$ 4 milhões em 20 dias de serviço?! E é apenas uma parcela do que a empresa fatura no período, vendendo um espaço medido em segundos. O cidadão que, com razão, reclama dos salários e vantagens recebidas pelos políticos, também deveria questionar o quanto essas empresas – concessões públicas! - pegam de recursos públicos e de uma pancada só.
O quadro abaixo mostra o quanto cada rede de televisão recebeu de recursos públicos nessa campanha:
BAND..........................R$ 1.009.798,70
GLOBO........................R$ 4.069.610,00
RECORD.......................R$ 3.906.210,00
REDE TV......................R$ 700.447,68
SBT.............................R$ 3.854.644,00
TV BRASIL................... R$ 176.840,13
TV A CRÍTICA.............. R$ 221.633,10
TV AMAZON SAT..........R$ 46.318,33
(Fonte: Ministério da Saúde/SGPR, Lei de acesso à informação, 26/04/2021).
A campanha foi uma criação da agencia Nova/SB e custou R$ 941 mil aos cofres públicos. Ela focou no público da TV aberta e foi veiculada nos programas de maior audiência; mas pela lista dos programas dá para notar as boas relações que seus apresentadores têm com o presidente.
A Record de Edir Macedo, líder da igreja Universal, é aliada de primeira hora do presidente. Idem Sílvio Santos - o dono do SBT costuma apoiar generais quando promovem golpes e capitães que anunciam golpes. A Globo, que historicamente apoiou golpes, critica politicamente Bolsonaro mas apoia as reformas que agradam as elites nacionais, como essas que Guedes está promovendo.
O governo pagou mais de meio milhão de reais somente para três programas de sangue da TV aberta. Cidade Alerta (Record), com Luiz Bacci, levou a maior parte da grana, quase R$ 395 mil. O programa de Luiz Datena, Brasil Urgente (TV Band), ganhou R$ 110 mil. Por fim, Sikêra Junior, com Alerta Nacional (REDETV), recebeu R$ 65 mil.
A preferência por esse tipo de programa tem a ver com a boa audiência, o seu estilo popularesco e, principalmente, por fazer a promoção da violência e das ações policiais, tão ao gosto de Bolsonaro e família. Os três apresentadores apoiam o presidente. Luiz Bacci festejou nas redes quando Bolsonaro foi eleito e, tal qual Bolsonaro, tem sido um ferrenho defensor da abertura do comércio nesse momento de pandemia; Luiz Datena já fez discurso em defesa do decreto presidencial que facilita a compra de armas e defendeu a reforma da Previdência proposta pelo governo; Sikêra Junior é escancaradamente um defensor do presidente e suas ideias.
A relação do presidente com esses apresentadores justifica as “entrevistas exclusivas” que Bolsonaro costuma lhes conceder. As tais “entrevistas exclusivas” costumam fugir de assuntos incômodos - como deve ser “uma boa conversa entre amigos”. Ou seja, não tem jornalismo. Em diversas ocasiões Bolsonaro manifestou que detesta jornalistas (principalmente mulheres) e as perguntas que fazem. O contato dele com a imprensa se resume a algo como “uma conversa de beira de estrada”, quando fala para os seus apoiadores na saída do Palácio da Alvorada.
A maior parte dos recursos públicos foi para os noticiários da TV Globo. Para divulgar a campanha nos intervalos do Jornal Nacional o governo pagou exatos R$ 1.619.560,00; para entrar no Fantástico foram mais R$ 1.253.620,00. A campanha também foi veiculada no Jornal da noite e Jornal Hoje da emissora. Somente com o jornalismo a Globo faturou R$ 3,1 milhões. O BBB da Globo faturou mais R$ 950 mil. A TV Record, do amigo Edir Macedo, recebeu R$ 850 mil para veicular a campanha no Jornal da Record e mais R$ 505 mil para o Domingo Espetacular – o que dá um total de R$ 1,3 milhão. O Jornal da Band embolsou R$ 345 mil.
O amigo Sílvio Santos, dono do SBT foi atendido: levou R$ 112 mil para veicular a campanha no humorístico A praça é nossa; mais R$ 347 mil para o Programa Sílvio Santos; cerca de R$ 83 mil para o Programa Raul Gil; outros R$ 160 mil para o programa Eliana; e R$ 500 mil para o Programa do Ratinho. A família Bolsonaro, e não somente o presidente, costuma frequentar os programas do SBT. Ratinho, bolsonarista convicto, “entrevistou” o presidente e seus filhos. Nesse caso, como de praxe, são conversas entre camaradas apresentadas ao público como “entrevistas exclusivas”.
A pergunta a ser feita pelo telespectador é: com esse dinheiro entrando no caixa da empresa o jornalismo optou por defender o governo ou sustentou a autonomia do jornalismo?
Nesse caso há, pelo menos, um bom exemplo. O site Poder 360 recebeu recursos (R$ 36 mil) para veicular a campanha de vacinação e mesmo assim fez matéria mostrando como o dinheiro público vai para as grandes redes de comunicação. O texto, publicado no dia 23 de abril, diz que desde o início do ano a TV Globo já embolsou R$ 9,8 milhões; a TV Record levou R$ 9,6 milhões e o SBT, R$ 9,09 milhões.
A publicidade governamental provoca alguns questionamentos. O primeiro diz respeito ao fato das empresas de comunicação se constituírem concessões públicas e ainda assim receberem recursos públicos para divulgar o que é de interesse público.
Uma outra reflexão deve ser feita sobre a pertinência e necessidade da campanha de vacinação. Talvez em Condições Normais de Temperatura e Pressão ela fosse necessária. Não é o caso. O Brasil tem um presidente atabalhoado, perdido, insensato, acusado de genocida, que não consegue falar uma frase coerente, incapaz de comandar um filhote de cachorro, quanto mais o país. Qual a eficácia de uma campanha como essa se o próprio presidente orienta a população a não seguir o que é certo, se ele anuncia que não irá se vacinar, se atuou para a pandemia se alastrar? Sendo assim, para que serviu essa campanha milionária paga com dinheiro público?
Os comentaristas e repórteres que exibem faces compungidas ao criticar o presidente por não usar máscara ou abraçar seus aliados fazem uma encenação teatral rasa que não vai ao cerne da questão. Não apontam a tragédia social e política mais evidente: há um governo militar (são 5.500 militares ocupando cargos civis) que a todo momento ameaça destruir a democracia; ataca as instituições republicanas, promove a violência, gera mais desigualdade, fome e mortes.
Desde a campanha à presidência até hoje Bolsonaro faz uso de um bordão dos nazistas, Deutschland uber alles, por ele traduzido em “O Brasil acima de todos”, anunciando seu perfil ideológico, e não se vê caras constrangidas na TV. Contra ele boa parte da sociedade se insurge - já se acumulam 109 pedidos de impeachment no Congresso -, mas a preocupação desse “jornalismo” é com o fato do presidente não usar máscara.
Parece mais interessante apresentar um sofisticado sistema de acompanhamento do genocídio da população brasileira, nos moldes das eleições ou da Copa Brasil, do que defender abertamente a saída de um governante que está provocando a morte de mais de 400 mil pessoas. E, claro, todos os dias se indignar porque o presidente está sem máscara na padaria.