"A vida é de quem se atreve a viver".


Verenilde Pereira, em foto de 1978, no jornal "A Crítica", de Manaus: "Penso em Cancellier e nas injustiças atuais..."
Não presenteie o genocida, use máscara!

Verenilde Pereira –

A foto é de quando eu era repórter do jornal A Crítica, em Manaus, 1978, três anos após o assassinato de Vladimir Herzog. Ia comentar sobre episódios da "imprensa baré", mas acabo de ver um noticiário sobre o suicídio do ex-professor e ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier. Isso me faz desviar o assunto - a questão não interessa a quem não tiver paciência para ler e pensar um pouco.

Penso em Cancellier - a quem não conheci - e também em Jean Améry, autor que me foi apresentado em uma disciplina com Rita Segato. Améry diz que o suicídio é um ato indescritível tanto no sentido gramatical como no factual. No entanto, diz ele, o suicida fala por si mesmo. Me vem à mente agora, o macabro espetáculo midiático oferecido ao público quando, no dia 17 de setembro de 2017, a delegada Érika Marena ordenou a invasão de mais de 100 policiais na universidade e prenderam o então reitor.

Filho de uma costureira e de um operário, com uma trajetória que inclui militância na UNE, nas campanhas das Diretas, Já! e nas questões relacionadas com a democracia e Direitos Humanos, Cancellier era querido pelos alunos e funcionários. Mas Érika Marena, por seu lado, era uma das principais assessoras do ex-juiz, ex-ministro da Justiça, que, segundo especialistas, não sendo justo, promoveu uma das mais vergonhosas e trágicas farsas do judiciário brasileiro.

Marena acusou Cancellier de envolvimento no desvio de mais de 80 milhões de reais da universidade e de obstrução da justiça. No interrogatório de algumas horas ele negou as acusações. Sem efeito. A partir de então sua voz, sua defesa, as provas a seu favor foram totalmente negadas, rigorosamente proibidas. Cancellier foi preso, teve seus pés acorrentados, suas mãos algemadas, foi humilhado durante a revista íntima quando ridicularizaram sua nudez, e, ao final, foi jogado em um presídio de segurança máxima onde permaneceu por 30 horas. Foi proibido de voltar à universidade que frequentava há pelo menos quatro décadas.

Enquanto isso, a delegada forjou, criminosamente, o depoimento de um delator inexistente que também acusava Cancellier. Com a crueza de sua alma, de seu coração e até de suas vísceras, a delegada assinou o documento falso, o que foi feito também pelo escrivão. Muitos lembram daquele momento, quando as imagens do ex-reitor explodiam nos noticiários e nas redes, com a roupa de presidiário, com seu olhar que visivelmente sucumbia. Não adiantaram as denúncias contra os feitos abomináveis da delegada. Como "punição" ela foi promovida pelo ex-juiz para um alto cargo no Ministério da Justiça, dirigido por ele.

Foi exonerada quando o ex-juiz-político brigou com seu patrão, o presidente reconhecidamente genocida. (Sabemos que hoje o ex-juiz é sócio de um escritório norte-americano que atende clientes e empresas investigados pela própria Lava-jato!). O caso, estarrecedor, demonstra o fortalecimento dessas infâmias, a miséria moral que se prolongaram. Sem conseguir sequer falar sobre sua inocência, Cancellier mergulhou no desespero e na depressão. O mundo para ele pode ter se transformado em uma grande tortura. Sua imagem era exibida como se ele fosse chefe de uma quadrilha, estava proibido de voltar à universidade onde compartilhava de forma brilhante e generosa o conhecimento adquirido com tanto esforço. Estava no auge de sua brilhante carreira. Se o ser humano é Linguagem, a sua estava sendo aniquilada, portando, ele também.

A condição se tornou insuportável e assim, no dia 2 de outubro de 2017, Cancellieri vestiu uma camiseta com as iniciais da universidade, foi a um shopping e se jogou do quinto andar. Tina 59 anos. Á época, de forma automática e imediata, os grupos que carregam uma consciência bovina alegaram algo do tipo "ele foi fraco", "30 dias é pouco"! Ora, os desesperos (no plural mesmo!) dos que se encontram INJUSTAMENTE numa cela, seja lá por quanto tempo, não levam os sujeitos nessa condição, a ter uma mesma reação.

São várias as repostas diante de juízes ou juízas que movidxs por suas vaidades, suas doenças morais e éticas, seus interesses financeiros etc... praticam crimes semelhantes em todo mundo. Inclusive nas regiões recônditas da Amazônia, como no rio Negro. Alguns reagem como o ex-reitor, outros se negam a entregar suas vidas. São trunfos. Cancellieri não suportou. Agora, o documento forjado pela delegada veio à tona onde se comprova que os promotores sabiam e foram parceiros da trama.

Ela "não ouviu nada" diz Dallagnol a Orlando Martello quando buscam estratégias para proteger a delegada e a farsa criminosa que cometeram. Em 2018, por FALTA DE PROVAS, o inquérito cheio de mentiras e inconsistências, foi encerrado, Não houve desvio de verbas. Era tarde, Cancellieri estava morto. Mas sua morte está inserida nesse projeto de destruição do país que inclui entre tantos itens, o uso da pandemia como estratégia institucional para a disseminação da morte e do suicídio coletivo.  (Sem falar da live presidencial da quinta feira quando o país teve mais de 1.550 mortos e o presidente fez propaganda infame contra o uso de máscaras, o que foi repetido na aglomeração que ele provocou no Ceará).

A pandemia, no Brasil, não é mera contingência, é um plano monstruoso que inclui a falta de vacinas, numa crise onde menos de 3 por cento de pessoas foram vacinadas, com os deboches e as mentiras deslavadas, com a falta até de sedativos em alguns hospitais em que pacientes foram amarrados.

Cancellier, naquilo que alguns consideram como um ato político, escreveu um bilhete encontrado em seu bolso, onde deixou escrito "MINHA MORTE FOI DECRETADA NO MOMENTO DE MINHA PRISÃO". Jean Améry fala sobre o indizível que envolve o suicídio de alguém, dado o limite da linguagem. Hannah Arendt deixou dito que "SOMENTE A PURA VIOLÊNCIA É MUDA, POR ESSE MOTIVO, A VIOLÊNCIA JAMAIS PODERÁ TER GRANDEZA".

Muitas pessoas já me ouviram repetir esse pensamento e continuarei a fazê-lo. Lembro que em alguns grupos étnicos esse ato é circunstancialmente praticado como eu e outras pessoas já registraram. Cancellieri me obrigou a desviar do assunto. Apesar de tudo, não cedeu à pura violência, não cedeu à total mudez. Com um "simples" bilhete. No mais, não entregue sua vida aos que desejam justamente sua morte. Proteja-se, desobedeça o genocida e use máscaras. Não o presenteie com sua vida.

Peço desculpas pelo desvio de assunto.... forças!

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