Memélia Moreira –
Narciso debruçou-se sobre o
Potomac, que de tão calmo
refletia imagens tal qual
espelho e com orgulho,
perguntou: "espelho, espelho meu
existe alguém com mais
votos do que eu?"
As águas se revolveram
respondendo:
"Sim Don Narciso,
Biden venceu"
Nas três últimas semanas, os Estados Unidos e o mundo, atônitos, se perguntavam quem seria o próximo presidente. Os votos anunciavam vitória incontestável de Joe Biden, candidato do Partido Democrata com 306 votos no Colégio Eleitoral – bastavam 270. Mas o Republicano Donald Trump, não aceitou a vitória do concorrente e entrou com mais de 30 ações para recontagem de votos em cinco estados diferentes. Perdeu todas as ações e no final da tarde desta segunda-feira, 23 de novembro, jogou a toalha e autorizou o início dos trabalhos da equipe de transição para o novo governo. Ufa!
Ainda na campanha, Trump tentou criar a situação de suspense na qual se viveu os últimos 20 dias. Nas dezenas de entrevistas concedidas a jornais e televisões de maio a novembro, o presidente dos Estados Unidos jamais respondeu uma pergunta: "Vai acatar o resultado das urnas?" E ele deixava no ar a dúvida sobre uma transição pacífica, mesmo sabendo que sairia da Casa Branca pelas mãos da polícia, ele mantinha o comportamento de quem jamais aceitaria um não do povo americano.
Esse comportamento indicou apenas que Donald Trump, embora tenha chegado a ocupar a mais alta posição no estado, desconhece a sociedade em que vive. Talvez nunca tenha se interessado em observar a rejeição absoluta que o povo desse país à quebra da constitucionalidade. Golpe de estado? Nenhum americano acreditou ou acredita nessa possiblidade. Golpe de Estado, pra eles, só é bom nos países em que o Império exerce seu domínio. Melhor dizendo, "países pobres e subdesenvolvidos".
A Flórida é um Estado que integra o conjunto de "estados-pêndulos", ou seja, uma hora vota num partido e em outra hora vota em outro. Diferente da Califórnia, por exemplo, que sempre vota no Partido Democrata. Ou do Texas que sempre elege o Partido Republicano. Mas a Flórida, nas cinco eleições que acompanhei, apenas uma vez elegeu um governador do Partido Democrata. E, nos 15 dias depois das eleições, conversei e entrevistei eleitores republicanos. Quis saber o que aconteceria se Trump perdesse. Foram algumas dezenas de pessoas. Todas elas votaram em Trump e todas elas deram a mesma resposta. "Se ele perder, ele sai e entra o novo presidente". E eu retrucava, "mas ele não quer sair". As pessoas me olhavam como se eu fosse estúpida e respondiam, "A Suprema Corte tira ele de lá".
A crença do povo americano nas suas instituições beira a uma religião fundamentalista. Por isso, as entrevistas de respostas dúbias do presidente do país nunca foram consideradas ameaças a um povo que, ao mesmo tempo em que tem baixíssimo interesse pelo processo eleitoral, tem a mais absoluta certeza de que as instituições não falham.
E carregam com orgulho o epíteto criado pela máquina de lavagem cerebral que funciona discreta, mas eficientemente nesse país que internalizou no povo a certeza de que os "USA, são a maior democracia na face da terra".
Contradizer essa certeza fere o orgulho nacional. Portanto, o medo de um golpe de Estado foi nosso, nós dos países sempre ameaçados pela "maior democracia do mundo". Uma certeza que chega a provocar inveja de quem conhece as ditaduras. Foi também de alguns intelectuais e analistas da esquerda.
Trump sabia de sua derrota, o povo americano sabia da sua derrota desde o dia 7 de novembro, mas ele nunca, em nenhum momento deu sinais de que "concederia" a vitória a Joe Biden. E esse ritual é quase sagrado. Na verdade, é sagrado. Por isso, Trump foi perdendo mais e mais simpatias. Chegou a criar um racha dentro de seu partido. Quanto mais dias se passavam sem conceder a vitória a Biden, mais seu prestígio naufragava.
Mas as eleições de 2020 vão passar à História dos Estados Unidos da América como a mais insólita de todas. A começar pela vitória de Biden, campeão de votos na História do país. É também a primeira vez que uma mulher mestiça é eleita vice-presidente– Kamala Harris tem pai nascido em Barbados e mãe na Índia. A eleição de 2020 foi recordista em comparecimento às urnas ou via correios. E elegeu um homem de 78 anos. O mais velho de todos os presidentes eleitos para dirigir os EUA. E mais, Trump estava praticamente eleito desde o ano passado e o Partido Democrata não tinha candidato. Ninguém queria enfrentar o republicano.
Nenhum comentarista político duvidava da vitória de Trump. A campanha mais parecia um passeio. A certeza era tão grande que o Partido Democrata escolheu Joe Biden para concorrer. Escolheu um azarão para não queimar nomes mais importantes.
Biden aceitou porque mesmo derrotado esta seria a coroação de sua vida política. Dos seus 78 anos de vida, o novo presidente dedicou 50 ao Congresso americano. Mesmo com cara de prêmio de consolação, não deixa de ser uma honra participar da disputa pela Casa Branca. Mas há sempre o inesperado – ou o destino, como querem alguns.
A epidemia do vírus corona, negada diariamente pelo presidente Trump, alcançava números altíssimos. Hoje se aproxima dos 250 mil mortos. New York se transformou numa cidade-fantasma. Ruas, restaurantes, comércio tudo fechado. E Trump receitando cloroquina e água sanitária para matar o vírus enquanto as estatísticas de mortes e contaminações cresciam, abalando moralmente um país que se considera invencível, apesar do Vietname. Mesmo assim, até maio, Trump continuava imbatível.
Mas chegou dia 25/5. Às 8h20 da noite, em Minnesota, o policial branco, Derek Chauvin transformou-se no maior cabo eleitoral de Biden. Louro, olhos azuis subjugou George Floyd, negro. Por 9 minutos e 30 segundos, o policial manteve sua bota no pescoço do negro e esse ainda conseguiu dizer 'não estou respirando". E morreu.
A morte foi o estopim para explodirem todas as iras de um povo, as violências, as homo e transfobias do presidente e, uma verdadeira batalha tomou conta do país da costa Leste à costa Oeste, com uma só palavra de ordem, Black Lives Matters (ou numa tradução livre, "Vidas negras importam" nessa horrível tradução. O verbo importar em português exige complementos). A rebelião quase se transforma em guerra civil e, na primeira pesquisa depois do assassinato, 13 dias depois da morte de Floyd, Trump teve sua primeira queda.
Daí em diante foi só caindo. Em agosto, quando a mestiça Kamala Harris foi escolhida para compor a chapa de Biden, os analistas já não tinham mais dúvidas. O democrata era o favorito. E assim foi.
Trump tem todas as características de uma personalidade narcisista. Nunca ouviu um "não" durante seus 74 anos. Cercado sempre de belas mulheres modelos, misses - ele foi dono do concurso "Miss USA" de 1994 a 2015 sua vida sempre foi um show. Com prazer perverso, dirigiu o programa The Apprentice no qual escolhia pessoas para dirigir algumas de suas empresas. E, quando a pessoa era eliminada, o atual presidente dizia aos berros com sorriso malévolo, You´re fired (você está demitido), ao vivo para milhões de pessoas.
Essa personalidade era a grande e talvez única preocupação da intelligentsia estadunidense. Afinal de contas ninguém pode prever as reações de um narciso ferido. A sociedade pensante foi ficando apreensiva acreditando cada vez mais que Trump poderia criar uma guerra civil.
Dinheiro ele tem para pagar mercenários e muitos dos seus seguidores estavam dispostos a esse conflito. Num país onde a Constituição garante aos cidadãos o porte de arma, sem qualquer controle, alguns intelectuais chegaram ao exagero de acreditar que os Estados Unidos poderia se transformar numa grande Síria.
Foi difícil a decisão de Donald Trump autorizar o processo de transição de Governo. Foi com ódio no rosto e nos gestos que ele enfrentou os holofotes das televisões depois do anúncio. Afinal de contas, 306 integrantes do Colégio Eleitoral e 79 milhões de americanos gritaram alto e bom som: You´are fired.
Mas não se enganem, ele se prepara para as eleições de 2024. Não combinou com os russos, republicanos que estão na fila, mas está deixando no ar a frase-ameaça de Arnold Scharzenneger no filme The Terminator: "I´ill be back".