Morillo Carvalho -
Azul da Prússia, peça de Alexandre Ribondi entra em cartaz hoje, sexta-feira, dia 20/1, às 20h, no Teatro do Brasília Shopping. Em exibição até dia 29/1, sempre às sextas, sábados e domingos (20h). Ingressos a R$20 (meia entrada) e classificação: Livre.
Em entrevista, Ribondi revela que o texto guarda o que há de mais íntimo de suas memórias sobre o autoritarismo no Brasil.
Era outubro do difícil ano de 2016 quando Alexandre Ribondi fez o convite: faz a assessoria de imprensa da peça pra mim? Nem hesitei em responder que sim.
Na curta história de uma amizade que parece vir de outras vidas, não foram poucas as vezes em que interrompi alguma prosa com ele para pedir pra gravar, já que projeto escrever sua biografia. Mas é no texto teatral em que ele mais se expõe e se revela.
Em tempos de quebra de paradigmas no jornalismo, não estranhe a publicação de uma entrevista feita por seu assessor de imprensa. Poucas foram as vezes em que estive neste papel, então considerei todos os critérios da reportagem para realizá-la. Que, de tão reveladora, merece ser publicada na íntegra – e não apenas nas aspas dos releases disparados para a imprensa.
Por coincidência (ou não), a entrevista ocorreu em 13 de dezembro de 2016. Aniversário do AI-5. Em seu apartamento, ele e Matheus Silva, o outro ator deste espetáculo, ensaiavam.
Entre um café e vários cigarros, espantando o calor da tarde que lufava pela ampla janela e lutando contra as dificuldades tecnológicas de lidar com um gravador digital que teve o cartão de memória todo preenchido ao longo da entrevista, a prosa que seguiu foi essa.
Morillo: Ribondi, vamos começar falando sobre o que há de principal: o tal azul da Prússia...
Ribondi: A cor a cor azul da Prússia? Bom, meu primeiro contato com essa cor eu não a vi, eu ouvi a palavra. Achei um nome muito bonito e depois eu vi que é um azul muito bonito. É uma cor que não existe na natureza, foi inventada em laboratório, e é altamente tóxico.
Aliás azul da Prússia era usado nas câmaras de gás dos campos de extermínio na segunda guerra mundial. Então é uma cor que traz essa maldição nela, apesar do nome bonito e da cor tão bonita, ela serviu para matar pessoas em campos de concentração e eu resolvi usar esse nome com a peça porque a peça também se refere a momentos difíceis da vida das pessoas momento de extermínio na vida das pessoas então daí eu achei que usar um nome tão bonito, tão poético para falar de um momento tão... duro da vida brasileira, como foi a ditadura, tinha tudo a ver. É tentar se aproximar do que foi o uso da cor para matar pessoas e aqui eu uso a cor para falar dos lábios de pessoas mortas.
Morillo: Então vamos entrar na peça. Estamos no momento em que visitar a história é uma emergência, para que determinadas ideias não se propaguem como se fosse em boas ideias. E aí vem o teatro contar um pouco da história, como você mesmo falou, de forma também lírica.
Ribondi: Eu acho que faz todo sentido e ainda vale lembrar que hoje [no momento da gravação da entrevista], 13 dezembro de 1968 foi assinado o Ato Institucional Número 5 (AI-5), que oficializou a ditadura que então tinha quatro anos, mas que ainda não era uma ditadura, o que havia era considerado como um rito de passagem.
Apenas a partir de 13 de dezembro ela se tornou oficialmente uma ditadura. Ditadura que durou 20 anos, né?
E como nós estamos vivendo momentos de muita incerteza no país – incerteza política, incerteza econômica, onde presidente da República tem codinome em quadrilha (risos), e onde você volta a ver a polícia nas ruas, pancadaria, agressão, violência, pessoas sendo presas, é muito bom a gente voltar a falar da época da ditadura brasileira.
Agora... Eu vivi a ditadura brasileira. Comecei ainda criança e sai dela um rapaz adulto, afinal de contas foram 20 anos, né, e é importante falar agora. Primeiro porque são minhas memórias e as minhas memórias são muito base das coisas que eu escrevo.
Tanto para teatro como para a literatura, para romances, são base... Então como eu vivi e tenho uma experiência desse período, eu resolvi escrever, muito mesmo levado pelo que está acontecendo agora. Este foi o grande impulso na minha vida para eu escrever essa peça: para o que está acontecendo agora. E trato como memórias.
Na peça, a ditadura é citada – ou uma grande parte dela – porque uma das personagens lê um diário onde há passagens do dia-a-dia na ditadura... Porque o ruim da ditadura, que ninguém para pra pensar nisso, é o dia a dia... É cada dia. Cada olhar de rabo de olho na rua, cada carro de polícia que passa. Isso é muito difícil. Por isso que eu escolhi esse diário contando “dia tal, dia tal”...
E como são memórias, por mais atroz que tenha sido essa ditadura envolveu pessoas que você gosta, que você ama, a casa onde você morou que foi invadida mas que continua na sua memória sendo uma casa muito bonita...
Daí o que você falou de lirismo. Tem lirismo nesse texto porque são memórias e algumas dessas memórias são muito bonitas, apesar de terem acontecido dentro de uma ditadura.
Morillo: Apesar de você, né Ribondi?
Ribondi: Apesar de você (risos).
Morillo: Também lirismo é uma característica do seu trabalho porque você optou por não tornar a memória - no caso, a memória da ditadura – em um panfleto. Ao mesmo tempo em que há no seu texto, na sua literatura, no seu teatro, uma espécie de militância, mas que não se traduz em panfleto...
Ribondi: Essa é uma pergunta difícil até de responder porque isso é uma análise vindo de fora. Que eu acho correta, mas que eu não sei. Porque eu não sei...
Porque eu acho que é uma questão pessoal, apenas pessoal, porque até durante a ditadura eu fiz panfletagem, mas eu tinha uma certa dificuldade. Eu achava que o tom não convenceria muito pessoas...
Assim... Eu achava que o panfleto eu que tava distribuindo não me convenceria. Eu me convencia por outras coisas: por observar a vida, por ler, por discutir com amigos, mas o tom do panfleto nunca me agradou de maneira nenhuma. Eu nunca saio por aí fazendo panfletagem de questão social nenhuma.
Eu não faço panfletagem LGBT ou pela mulher ou pelos negros, mas eu trato de entender, filtrar o que eu entendo e o que eu percebo nas minhas obras. Que podem ser extremamente agressivas, mas nunca panfletárias, nunca de gritar.
Pra mim, por exemplo, nessa última peça que eu fiz na Oficina do Ribondi, em que as pessoas gritam “isso é Brasil”, já estava esbarrando no panfletário. E eu tomava muito cuidado com isso porque se me agredisse, até estaticamente, eu não colocaria.
Mas é que nesse momento está sendo tão importante você dar uns berros que eu achei legal dar uns berros, assim como os atores levantarem no final ao som da música “A Carne”, da Elza Soares, e olhar para a plateia.
Fazia sentido, faz muito sentido porque tá chegando o momento que você tem que alertar as pessoas das monstruosidades que acontecem e que vem acontecendo o tempo todo.
Morillo: Você falou que foi influenciado por esse momento que você escreveu Azul da Prússia. Então conta um pouco do seu processo de criação para a peça...
Ribondi: Tudo começou assim: eu... eu... eu pensei inicialmente que seria um só ator em cena recordando a vida sentado no ponto de ônibus. Depois eu achei que...
Mais um monólogo-monólogo... Que já carrega um peso tão grande nos ombros... Monólogo... Que eu não gostaria de fazer um monólogo... Então que gostaria de fazer um biólogo (aqui interrompemos a conversa pra morrer de rir.
O Ribondi tira essas da manga e fica difícil manter a seriedade). Eu sempre digo isso: não é um monólogo, é um biólogo (a gente continua rindo mais um pouco... Biólogo! Hahaha).
Então é um biólogo o que eu estou fazendo com o Matheus Cabelo (momento piada interna, já que esse apelido surgiu no início desse ano, quando havia dois alunos “Matheuses” na Oficina do Ribondi e este, carinhosamente, ganhou o apelido pela excentricidade com que se penteava).
Eu acho que estou batizando ele artisticamente, Matheus Cabelo...
Morillo: Já vou perguntar isso para ele... (risos)
Ribondi: E ele, a personagem do Matheus Cabelo, conversa com a personagem que sou eu... (Pausinha reflexiva). Hoje, no processo de ensaio, eu tô arrependido porque as frases dele são muito curtas e as minhas...
São imeeensas, são páginas! Vai decorar isso pra você ver... Eu estou profundamente arrependido. Mas (voltando à resposta) o meu processo de criação começa, por exemplo, com o título. Esse título, Azul da Prússia, eu tenho ele guardado há anos na cabeça para um dia aplicar a uma peça.
Assim como eu tenho outros, tipo “A Vida Ordinária de Cristina” vai ser uma peça um dia, WC, são títulos que eu guardo. Eu começo... É engraçado que eu começo pelo título porque eu acho que quando a gente vê um presente pela primeira vez, o que a gente vê do presente é o embrulho e o título para mim é um embrulho, é o que vai chamar atenção, é que vai mostrar as suas intenções com aquele presente, né, um imenso laço vermelho, uma caixa grande...
Todas essas coisas. A partir do título eu penso uma coisa: o que que eu quero falar... Porque que eu quero falar... Nessa peça especificamente queria falar da ditadura. Mas aí eu também entro em como eu quero falar, com que recursos dramáticos e dramatúrgicos eu vou falar sobre isso. Eu penso no cenário.
É... Como a gente faz teatro em Brasília você tem que pensar em tudo. Poucas personagens, se possível cenário que não seja dispendioso porque nós, de fato, não temos uma grande produção... Não temos dinheiro... Eventualmente temos...
Mas eu trato de facilitar tudo, né? Daí ter imaginado um ponto de ônibus... pah! Duas personagens... Aí os recursos de luz, a música... Sim eu penso em tudo isso quando eu tô escrevendo porque se eu penso no tipo de música que eu quero eu já consigo imaginar como eles vão falar em função da música.
Depois eu penso nas personagens e uma das primeiras perguntas que a minha personagem faz à personagem do Matheus Cabelo é “o que que você tá fazendo aqui”.
São coisas que eu sempre falo na minha Oficina: nunca pergunte “quem” é a sua personagem, e sim o que ela quer e para onde ela vai. E ele insiste nessa pergunta.
E eu também me preocupo em responder a essas perguntas: o que que a minha personagem está fazendo ali naquele ponto de ônibus e o que a personagem da outra pessoa tá fazendo ali no ponto ônibus e porque elas se encontram, como elas se encontram e porque que a conversa rende uma peça inteira...
Eu penso em tudo isso quando vou escrever e aí eu fico em casa, ou tô indo em algum lugar e fico pensando na peça. Aí quando eu sento eu começo os diálogos...
Eu nunca penso nos diálogos, eu penso em como percorrer o caminho, porque é um caminho, né? Do começo da peça até o fim é um caminho que você percorre.
Me preocupo também em colocar surpresas dentro do texto porque uma vez uma pianista clássica me disse que a plateia não consegue prestar atenção, não importa no quê, por mais de 20 minutos. Em 15 minutos ela começa a bocejar, mexer a cadeira, então tem que dar um susto.
Na música clássica é fácil porque basta levantar o cara do prato e fazer “baaaah”... (risos) Na peça eu deixo que as surpresas venham pouco a pouco... Fatos que poderiam até acontecer no final, mas que não acontecem no final...
Hoje mesmo estávamos aqui nós dois trabalhando em uma cena em que a minha personagem, que é um mendigo, começa a falar francês...
Morillo: Pois é. É a improbabilidade desse diálogo, né? Porque o que o que existe em Azul da Prússia são duas personagens mantendo um diálogo improvável, no meio de uma madrugada, num ponto de ônibus... Um mendigo e um jovem (da vizinhança, ele completa) da vizinhança (eu concordo), e que não é uma cena corriqueira...
Ribondi: Eu acho, por exemplo... Aqui em Brasília, eu acredito nas outras cidades também, muita gente em bar começa a bater papo com aqueles mendigos tradicionais da cidade.
No bar Moisés, que eu frequento, você frequenta, tem uma senhora de cabelos brancos, muito magra, cheia de sacolas e muita gente fica conversando com ela.
Eu me pergunto até que ponto essas pessoas que conversam ela tem real interesse pela pessoa que ela é ou se é apenas um folclore conversar com o mendigo, é divertido, engraçado...
O que é uma imensa falta de respeito. Então se eu realmente não tenho interesse na pessoa eu não vou conversar com ela porque eu não vou usá-la para minha diversão.
Também porque eu acho que “caridade”, a palavra “caridade” que é tão importante para as pessoas que têm fé é um é um ato de hipocrisia.
Porque caridade, em seu sentido primeiro, é resgatar a dignidade perdida e você não resgata a dignidade de ninguém dando uma moedinha.
Claro que comida sim, porque ninguém pode ficar sem comer enquanto a dignidade não chega...
Resgatar a dignidade perdida é se interessar realmente, olhar nos olhos, cumprimentar, conversar...
Às vezes você bater um papo com uma pessoa de rua pode ser tão energizante quanto um prato de comida, mas é você conversar de igual para igual, é você tocar no mendigo.
As pessoas não tocam, elas tem nojo de tocar no mendigo e conversar olhando nos olhos, mostrar para ela que somos iguais. Então eu acho que eu já saí totalmente... (risos)
Morillo: Não saiu não, é sobre o diálogo improvável...
Ribondi: Esse diálogo improvável acontece na peça, eu acho que a personagem, no início a personagem do Mateus Cabelo começa comedida, com a curiosidade que ver o mendigo, que está perto da casa dele, sentado lá há dias, e começa a conversar.
E à medida que vai conversando e descobrindo que esse mendigo tem um universo, mesmo que nebuloso, mesmo que você não entenda muito bem, que é admirável, que é fantástico tudo que já aconteceu na vida dele e ele vai ficando realmente interessado...
Que é um recurso muito parecido que quando eu escrevo, eu faço com o público, as pessoas vão ficar: “qual é a história desse cidadão?” “porque que ele sabe falar francês”, entre várias outras coisas né? Porque ele sabe falar francês tão bem?
O que aconteceu na vida dele? E vai... E vai até o final da história, e se ele for de fato uma grande pessoa, essa personagem, ele vai aprender muitas coisas na conversa comigo (a personagem).
Morillo: Eu queria saber se houve algum personagem da vida real que te inspirou para o mendigo...
Ribondi: Quando eu tinha nove anos, e isso não é novela, eu tinha um grande amigo chamado “Hominho”, que tinha a mesma idade que eu. E nós conhecemos uma mendiga, que tinha nessa época a idade que eu tenho hoje. Negra.
E ela foi chegando perto das nossas casas, perto da estrada de trem, dos trilhos (ato falho: esqueci de perguntar a cidade. Ribondi viveu em meio Espírito Santo na infância).
E ela montou um barraquinho que era pedras e... Sabe esse papel grosso, de saco de cimento?
Coberto com aquilo. E ela colhia taboa, que é, assim, uma coisa que dá no charco, nas aguinhas (um vegetal que nasce em alagados) para fazer comida.
E eu e o Hominho entrávamos lá dentro da casinha, tínhamos a honra de ser recebidos dentro da casa dela. E ela era extremamente mal humorada, mas muito gentil.
Lembro disso com muito amor. A gente passava horas dos nossos dias de meninos de 10 anos conversando com ela lá dentro.
Eu não me lembro sobre o que a gente conversava, mas eu me lembro dela até hoje. Lembro mesmo, com detalhes, eu acho que se eu a visse na rua hoje, eu a reconheceria 50 anos depois.
Ela interferiu na minha vida de uma maneira muito forte. Eu não lembro sobre o quê nós conversávamos, mas em algum lugar na minha memória as conversas estão guardadas e me movimentam, pro meu raciocínio, para movimentar meu coração eu pensei muito nela, nessa mulher.
Quando escrevi o “meu” mau humor (da personagem), a bondade misturada com o mau humor e eu me lembrei dela. Eu dedico esse trabalho para ela e também eventualmente para pessoas que passaram por uma barra pesada durante ditadura e que ficaram bem alteradas por terem passado.
Mas menos. Eu dedico a ela mesma, porque mesmo em tempos de democracia a vida de uma pessoa pode ser uma ditadura... Por tudo que ela passou, pelas privações dela, por não poder fazer nada...
Uma pessoa que é tão pobre que não pode ir à escola, não pode viajar, não pode comprar um livro para ler, não pode decidir sobre a própria vida... A vida dela é uma ditadura! E isso acontece em todos países do mundo.
Prosseguimos a conversa por mais longos dezoito minutos. Transcritos, renderiam o dobro do que já conversamos até aqui. Vamos pular essa parte, então.
Morillo: Considerações finais? (risos)
Ribondi: A ditadura ainda pode estar no coração de quem passou por ela. Porque está e como é que isso pode interferir no relacionamento de uma pessoa que viveu a ditadura com uma pessoa que não viveu a ditadura é o que ele faz durante a peça.
Mostrar para uma pessoa bem mais nova o que aconteceu, com e sem intenção de mostrar o que aconteceu com ele, com a vida dele e com a alma dele por ter vivido uma ditadura.
As perdas, as mortes, as tristezas, a solidão, tudo de uma pessoa que passou por um processo de ditadura – e sem fingir que não era uma ditadura no Brasil.