Miriam Gimenes, do Diário do Grande ABC –
Anita Leocádia Prestes tem no nome homenagem a duas mulheres fortes. O primeiro se refere a Anita Garibaldi, revolucionária brasileira. O segundo, é dedicado à avó paterna, que vivia à frente de seu tempo. A historiadora, nascida em uma prisão nazista, na Alemanha, é filha da militante alemã Olga Benário e do líder comunista brasileiro Luís Carlos Prestes. Olga morreu em um campo de concentração, e quem criou Anita foram a avó e uma das tias, Lygia.
Historiadora e professora de pós-graduação em história comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Anita tem 83 anos e mora no Rio.
Anita acaba de lançar o livro A Vida é Tomar Partido (Boitempo), em que escreve suas memórias, inclusive sobre as lutas que travou em mais de oito décadas de vida.
A senhora acaba de lançar um livro de memórias que mostra não só a luta dos seus pais como também a sua para defender seus ideais. Como foi revisitar a sua história?
Eu não tinha nenhum projeto de escrever memórias. Mas houve muita gente, amigos, insistindo, achando que era importante, que conheci episódios importantes do País. Que havia os aspectos humanos dos meus pais (Luís Carlos Prestes e Olga Benário) que eu poderia ressaltar mais nas minhas memórias. E, em particular, que poderia falar da minha avó (paterna, Leocádia) e minhas tias (Eloisa, Clotilde, Lygia e Lúcia), mostrar o papel delas, de toda a luta que tiveram. Tudo isso me incentivou a escrever. Também vi que era importante descrever uma parte da atuação política, para as novas gerações, para conhecerem a experiência do PCB, que desempenhou um papel importante no Brasil, mas teve erros também. E o título só surgiu no final. Aprendi com a minha família a sempre tomar partido, não ficar indiferente. Minha avó vinha do século XIX, mas ela sempre estava participando (politicamente), esse legado me influenciou muito.
A luta que travou durante toda a vida, assim como seus pais, foi contra o fascismo. Como vê que o movimento continua com força, principalmente no Brasil?
É um grande perigo e tem de haver mobilização contra isso. Na Alemanha, por exemplo, na década de 1990 estive lá, já havia um movimento antifascista grande, que hoje prossegue. Existem grupos de militantes antifascistas que se mobilizam, trabalham para desmascarar, denunciar as ameaças. No Brasil está tudo muito desorganizado, difícil. A derrota das esquerdas foi grande. Se você não se mobiliza, eles vêm aí com essa pressão, e o resultado pode ser desastroso.
A senhora nasceu em uma prisão nazista na Alemanha. Sua mãe foi vítima do nazismo. Como recebeu as declarações de que o nazismo foi movimento de esquerda?
Essa é uma das muitas besteiras que falam, faz parte. Tem vários pesquisadores dos militares justamente mostrando isso, que essa loucura, no fundo, faz parte de toda uma política que está sendo aplicada pelo governo brasileiro. Aparentemente é tudo um besteirol grande, parece até caricato, mas por trás há uma luta contra o marxismo, além do comunismo, que não representa no momento nenhum perigo. É uma luta no fundamental contra o movimento popular, ou qualquer tipo de movimentação do povo. É o novo tipo de guerra fria. Agora não tem a União Soviética, então inventaram esse marxismo cultural. É absurdo.
Na época da ditadura a senhora trabalhou bastante a questão do comunismo aqui no Grande ABC, nas montadoras. Que memórias tem dessa época?
A minha experiência, que está no livro, foi principalmente com um grupo de operários da Volkswagen (em São Bernardo). Eu estava muito entusiasmada porque a diretriz principal do partido na época era organizar o partido no movimento operário e nas grandes fábricas. E lá tinha um grupo de jovens comunistas muito interessante, porque eles eram pessoas já com um nível de escolaridade mais alto, ferramenteiros, pessoas inteligentes, com boa formação, e eu dava curso de marxismo para eles, eram muito interessados, combativos. Mas houve falta de segurança, foi todo mundo preso, e depois descobrimos que o serviço de segurança da fábrica denunciava os trabalhadores à polícia, era um nível de repressão muito aperfeiçoado. Para mim foi uma experiência interessante, mas que mostra que não dá para repetir.
Chegou a ser condenada a quatro anos e meio de prisão durante o exílio por este trabalho. Como recebeu a notícia à época?
Era uma tortura bárbara a que esse pessoal foi submetido. Eu fui uma das denunciadas, e não só pelo pessoal da Volks. Teve um dirigente (do PCB) de São Paulo que foi preso e me identificou, falou do meu pseudônimo, Alice. Eles não sabiam quem eu era, não me conheciam como filha do Prestes. A polícia começou a procurar uma Alice em São Paulo, mas não encontraram. Imagina, com esse nome tem muitas. Quando descobriram quem eu era, a minha situação ficou pior. Saiu manchete nos jornais, e o tribunal militar tinha interesse em caracterizar isso (de quem era filha). Tanto que levei a pena maior no processo, enquanto tinha gente de maior responsabilidade incluída. Consegui escapar [e ir para Moscou] com a ajuda do partido.
Também viu, ainda que de outro país, o nascimento das greves no Grande ABC e do Partido dos Trabalhadores. Como vê o desenrolar da história deste partido?
Meu pai achava interessante o surgimento de um Lula, porque havia operários com a mesma disposição dele à época. Mas acho que o PT e o Lula enveredaram pelo reformismo, nunca foram consequentes lutadores pelo socialismo. Na realidade, o projeto dele e do próprio PT seguiu o caminho de melhorar a vida dos trabalhadores, só isso. E sem entender que o estágio do capitalismo de hoje não tem como resolver os problemas dos trabalhadores dentro do marco do capitalismo. Você tem de ter um projeto de reformas profundas, que abram caminho em direção ao socialismo. Não foi isso que foi feito. A Carta ao Povo Brasileiro do Lula (2002) deixou claro que ele estava a fim de conciliar com o grande capital, que deixou ele se eleger. Ele foi derrotado por três eleições seguidas. Entendeu que para conseguir se eleger, na ausência de importante mobilização popular, tinha de se articular com o grande capital, banqueiros, imperialismo; então chegaram a um acordo. Fez uma política de melhorar as condições de vida dos trabalhadores, mas sem fazer nada para realmente transformar essa sociedade. Ao mesmo tempo, os banqueiros nunca estiveram tão felizes. Na hora que a crise ficou séria, em 2013, essas políticas do PT não agradavam mais; eles foram tirados de lá, derrubados.
A ditadura foi um período muito triste não só da história brasileira, como em outros países com regimes totalitários. Como vê as pessoas fazendo manifestações pedindo a volta do AI-5 e o fechamento do Congresso Nacional?
Faz parte de um projeto do qual [o presidente Jair] Bolsonaro está sendo o executor. Não é nem dele esse projeto. Há uma discussão de quais são as origens desse projeto; tudo indica ser o conservadorismo norte-americano. Dizem que ‘a guerra fria acabou’ e precisaram inventar outro pretexto para brecar e fazer frente às lutas populares. Se lembrar, o golpe de 1964 tinha duas bandeiras, contra a corrupção e o comunismo. Toda essa estratégia, essa política traçada nas origens desse grupo, junto com os evangélicos, que foi uma penetração norte-americana aqui, e o Estado de Israel, é que conseguiu fazer do Bolsonaro o seu executor no Brasil. E são os próprios militares que dizem isso. O general (Sérgio Augusto de) Avellar Coutinho, em um livro escrito há alguns anos, pouco conhecido, justamente defende essas ideias de que o Bolsonaro é um dos executores.
A classe dos trabalhadores, que a senhora defendeu durante sua trajetória, veem cada vez mais seus direitos cerceados. O que esperar do futuro?
A pandemia agravou a situação da classe trabalhadora, mas isso vem vindo desde o [governo de Michel] Temer. A alteração da legislação trabalhista vem daí, a terceirização. Cada vez tem menos gente com carteira assinada, os trabalhadores trabalham por hora, não têm férias, não têm direito trabalhista nenhum, todas as conquistas foram por água abaixo. E agora, com a pandemia, acho que vai piorar. Enquanto não houver organização popular para fazer frente a essa avalanche fascista não tem como ver algo melhorar.
Tudo que não é relacionado à direita, hoje, é classificado como comunista. As pessoas não têm o entendimento do que é o comunismo?
É uma ignorância grande e as elites no Brasil promovem essa ignorância. Com o ministro da Educação que temos hoje [Abraham Weintraub], como vamos esperar o avanço cultural? Todo o conjunto é contra a ciência, a cultura. É toda uma política de fazer as pessoas se alienarem. E daí para pior.
Enquanto historiadora, qual a importância do estudo da disciplina para o futuro da humanidade?
Os jovens que não conhecem sua história como podem transformar a realidade? É impossível. Não existe vácuo. Se não se tem um mínimo de conhecimento da história vai-se cair na conversa dos bolsonaristas, que disseminam um mundo de coisas falsas para os jovens assimilarem. E é esse pessoal que está gritando na rua, se deixando manipular.
Acredita que o socialismo é solução para os principais problemas enfrentados pela sociedade hoje?
É a única solução que se tem. Mas não quer dizer que seja de imediato. Tem de preparar o terreno para isso. Forças políticas e sociais que devem se organizar, principalmente os trabalhadores em diferentes setores. A partir disso vão surgir lideranças que sejam realmente autênticas, identificadas com os interesses dos trabalhadores, que não vão capitular diante do grande capital. Não sou pessimista, mas no Brasil vai demorar muito [para isso acontecer]. Não vejo nenhuma liderança. A história do País, do jeito que se desenvolveu, com as elites escravocratas conseguindo fazer com que os setores populares ficassem alijados da política e fossem sempre derrotados, com seus líderes sendo trucidados, a exemplo o próprio Tiradentes. Isso é um legado muito pesado que carregamos.
A senhora dedicou sua vida a um ideal. Se arrepende de algo?
Não me arrependo de nada. Os próprios erros [que cometi] foram procurando acertar. Quando falhamos, achávamos que estávamos certos; é difícil acertar na política. Tudo que fiz foi sempre com propósito honesto e errar faz parte da luta, que teve muitos aspectos positivos. Me orgulho muito dos meus pais, aprendi muito com a experiência deles; minha avó era uma mulher incrível, minhas tias também. Aprendi muito com essa família em que tive sorte de nascer.