Angélica Torres -
É de chorar, de tristeza, indignação, horror, saber que Maria Madalena, só em 2016, foi oficialmente reconhecida pelo Vaticano como a única apóstola entre o elenco de evangelizadores de Jesus Cristo e redimida da fama de prostituta, a ela imputada pelo papa Gregório Magno, no ano 591.
A essência feminista do filme Maria Madalena (2017), se justifica, assim, quando ao final o jovem diretor australiano Garth Davis revela o resgate da honra, pelo admirável Papa Francisco, dessa personagem bíblica que encarnou por séculos a primeira famosa personagem boa de cuspir da história do Novo Testamento, depois de Eva, do Antigo Testamento.
Algo está mudando? A passos de uma tartaruga-matusalém, mas, parece que sim. Espectadores saem do cinema surpresos, murmurando "que interessante" e disfarçando as lágrimas pelas crueldades do tempo do império romano ̶ mas também pela nitidez com que o estilo permanece até hoje (agora, sobretudo), embora com outro figurino, design, dicção e cacoetes.
Madalena (Rooney Mara) nesse contexto é uma mulher atemporalmente moderna. Irmã de um brutamontes machista que a obriga a se casar contra sua vontade, ela escolhe seguir Jesus (Joaquin Phoenix) junto com Pedro, Judas, Felipe, André e os demais. Mas não antes de ser torturada pelo irmão, com a cumplicidade de amigos e do pai, sob a desculpa de exorcizá-la do “demônio” ̶ sua personalidade de mulher independente.
Frágil mas corajosa e decidida, surge uma nova Madalena aos olhos do espectador, e a milenar história de Jesus toma feição feminina, matriarcal, delicada, intuitiva, fazendo jus àquela mulher que sempre esteve por perto dele, mas sem que se soubesse ao certo o seu papel e de que modo atuava.
LULA - No entanto, se não fosse por essa nova abordagem, o filme surpreenderia por outra, também tão atual quanto, especialmente para o público brasileiro, no momento. Impossível não conectar a chegada de Jesus à aldeia de Magdala e a Jerusalém, aclamado e endeusado pelas multidões, a Lula entrando com suas caravanas nas cidades do interior do país. Os sermões do avatar socialista e revolucionário monopolizando os judeus para a espera do reino de Deus, como os discursos do líder dos trabalhadores ganhando o povo para a esperança de suas reconquistas sociais. E ao final das preleções, os brados repetidos de Messias!, como de Lula lá!
Não se trata de ver Lula como um "messiânico" ̶ termo com que adversários adoram ironizar os também chamados por eles de "ídolos populistas" ̶ mas da parecença mesma da personagem carismática, de bicho do povo, de pelúcia, que todos querem tocar, abraçar, acarinhar e receber dele afagos como bênçãos e aclamá-lo como a um salvador. A imolação também, a perseguição, a traição, a condenação, tudo evoca o paralelismo entre os dois líderes.
Não à toa circularam na rede tantas mêmes e tantos cartuns e máximas correlacionando a história de ambos, nesta Semana Santa. Mas, na verdade, esse substrato verificado em "Maria Madalena" extrapola o nosso drama (já tragédia) nacional para um retrato mais amplo, que se revela em vários países do mundo explorado e dominado pela expansão do capitalismo.
Daí porque é de se supor que, ao invés de extinguir, a egrégora de Cristo só se amplia, ao longo de 2018 anos: a humanidade, no Ocidente e no Oriente, com sua alta cota de sociopatia, ignorada pela medicina, ou não diagnosticada e tratada como urge ser, tem, na constante revivência do sacrifício dele, a simbólica lembrança do protesto à injustiça, perversidade e violência humanas.
Triste humanidade. A se medir pelo tempo que levou a libertação de Madalena da brutal condenação pelo patriarcado, quantos séculos ou milênios mais levará o planeta para se curar da indigência ética, moral, espiritual que o atormenta, desde os primórdios de vida do homo sapiens?