Maria Lúcia Verdi –
Parece-me bastante interessante a Academia ter premiado como o melhor filme de 2017 “A forma da água”. Num momento em que o mundo vive a espera do (há muito pouco fantasioso) encontro do Xerife Trump com o Presidente da Coréia do Norte; em que a realidade dos refugiados invade a mídia, assim como as provas concretas de que as reservas do Planeta precisam ser protegidas, os americanos entregam a estatueta a uma fábula romântica e irrealista.
Não sendo da área de cinema, posso apenas colocar observações leigas. Sim, o filme é bem dirigido; sim, a direção de arte é ótima e, sim, Sally Hawkins está magnífica como Elisa. Mas não sei se isto basta. Como não vi os outros filmes ainda, observo a premiação apenas como um sintoma.
Ambientado durante a Guerra Fria, nuns EUA em que as pesquisas científicas e os depoimentos sobre supostos encontros com ETs e abduções são guardadas a sete chaves pela NASA e pelo FBI, Guillermo del Toro escreve e dirige um filme que provoca estranheza.
Um ser anfíbio é recolhido pela inteligência norte americana, na América do Sul, na Amazônia. Nomeado como A Forma, ele é um suposto deus para os indígenas. Elisa, uma faxineira muda e romântica de um laboratório de pesquisas (habituada a masturbar-se na banheira todas as manhãs antes de iniciar seu dia de trabalho), descobre a Forma e estabelece com ela (com ele) uma ligação que vem a se desenvolver numa paixão inclusive erótica.
Ela é muda, mas escuta, é muito expressiva e adora dança. A Forma passa a compreender seus gestos e a responder a eles. O primeiro desses gestos é a entrega de um ovo, que Elisa come e oferece à Forma. O ovo é sempre uma pergunta. No silêncio dessa exótica relação, construída por gestos delicados e protetores, o aspecto da Forma, a própria diferença em relação ao corpo suave, virginal da moça, não impede o amor.
Conhecemos a lenda do Boto amazônico - embora não se veja o sexo da Forma, Elisa explica à amiga, por gestos com as mãos, que o membro sai de dentro de seu amante verde. O corpo da Forma, portanto, aparentemente assexuado, sem seios, sem pênis, mas revela um gênero na intimidade. Outra questão interessante.
Numa cerimônia de entrega de Oscar (que não assisti) em que o politicamente correto deu o tom desde o visual dos apresentadores aos discursos dos premiados, temos, neste Melhor Filme, uma protagonista muda com uma melhor amiga negra, um melhor amigo gay sênior e como amante um alienígena amazônico. Um curioso triângulo solidário que deseja salvar a Forma. E o hoje tão desprestigiado Brasil também está em uma das músicas da ótima coluna sonora, com a voz e imagem televisiva de Carmem Miranda.
Há um espião russo no filme que também quer proteger a Forma que o chefe da segurança do laboratório americano quer destruir. É ele quem ajuda Elisa e seu amigo a raptarem a Forma do laboratório.
Esse chefe de segurança, o protótipo do macho insensível, é ridicularizado pelo diretor, que o retrata como um Papai Sabe Tudo (série televisiva dos anos 50) numa família típica do modo de vida americano, centradas em torno da televisão, dos Cadillacs e de uma sexualidade de plástico.
Casado com uma Barbie ele deseja a faxineira Elisa, que não é nenhum tipo especial de beleza, por ela ser muda; ao fazer sexo com a mulher, cobre-lhe a boca. A amiga de Elisa, a faxineira negra, é casada com a versão negra do macho branco que é o chefe de segurança. Numa fala curiosa, ela diz à Elisa, que está comendo seus “cereals” (sucrilhos, cereais, flocos): “Dizem que inventaram os `cereals` para evitar a masturbação”.
Tudo é coerente com um tempo histórico e uma estética, com exceção da Forma. Ela irrompe como o estranho, mas um estranho-familiar (Freud, Das Unheimliche) que se mostra para Elisa, como a possibilidade do amor. Coloca-se em questão um tema muito atual, além do da aceitação da diferença, que é o da impossibilidade amorosa. Por todo lado vemos e ouvimos as pessoas falarem que está impossível “encontrar alguém” num mundo em que todos se encontram nas mídias sociais.
No século do individualismo radical, do narcisismo absoluto, fazer um par é mesmo bastante irreal. Pois o filme traz o romantismo que faz falta, expõe belas cenas aquáticas do fantástico encontro entre a bela (não Bela) e a fera (não Fera) – a melhor sendo a do banheiro da protagonista. Algo muito atual: o tema da escassez da água, das formas de vida que não podem se perder.
O filme me divertiu, não o levei a sério, mas acredito que muitas jovens, mesmo as com tatuagens e piercings, devem ter suspirado nas cenas românticas entre o par de protagonistas.