Romário Schettino -
CPI dos maus tratos às artes. É assim que deveria se chamar a CPI dos Maus Tratos às Crianças e Adolescentes, que o Senado instalou sob a presidência do senador Magno Malta (PR-ES). Isso porque os dois curadores convocados para depor na tarde do dia 23/11 tiveram que passar quatro horas sendo interrogados para provar que estavam certos e que as artes que defendem não tinham nada a ver com o objeto da CPI. Como não houve crime, não há criminosos.
Os maus tratos às crianças brasileiras merecem uma investigação mais séria e comprometida com o futuro, não com investidas fundamentalistas prejudiciais à democracia e à liberdade de expressão.
O relator José Medeiros (Podemos-MT) tentou justificar o seu papel fazendo perguntas com base em informações que recebeu por meio das redes sociais, envenenadas por grupos preconceituosos, considerados fascistas. Denúncias inverossímeis, como a da fotografia de quadros que sequer estavam expostas na exposição questionada, a Queermuseu – cartografias da diferença na arte brasileira, sob a curadoria de Gaudêncio Fidelis.
As acusações eram de que a Queermuseu fazia apologia à pedofilia e à zoofilia e ainda expunha as crianças a cenas impróprias para menores. Fidelis disse que os quadros a que se referiam os caluniadores “eram obras de arte que denunciavam, ou seja, eram o contrário da apologia”. Segundo ele, o papel da arte é ser instigante, provocadora; vai ao museu, às salas de exposição, quem quer. "Não podemos impedir que as pessoas decidam o que ver, ler ou ouvir", defende Fidelis.
O senador Humberto Costa (PT-PE) registrou a onda negativa que se abateu sobre a exposição Queermuseu e atribuiu esse ataque a pequenos grupos mal intencionados que queriam desviar as atenções do atual quadro de corrupção no governo do presidente Michel Temer. “Esses reacionários sem causa, que viviam batendo panela contra a corrupção, recolheram seus instrumentos e partiram para uma missão moralista, defendendo a censura em nosso país”, disse o senador petista.
Marta Suplicy (PMDB-SP) elogiou o trabalho de Gaudêncio e pediu desculpas por estar o curador sendo constrangido e obrigado a comparecer a uma CPI para dar explicações sobre um assunto “absolutamente estranho ao objeto da investigação”. Marta considera que os ataques às artes brasileiras são inconcebíveis e expõem o país ao ridículo perante o resto do mundo.
AMEAÇAS
O pequeno grupo que conseguiu chegar à sala da CPI recebeu ameaças do presidente Magno Malta e foram impedidos de fazer qualquer tipo de manifestação. “Se os visitantes se manifestarem vou evacuar”, repetia Magno Malta, provocando ainda mais risos. Mesmo assim, quando a sessão foi suspensa por alguns minutos, todos levantaram seus cartazes de protesto para os fotógrafos (foto).
NU ARTÍSTICO
Durante o depoimento do curador Luiz Camillo Osório, da exposição "Panorama da Arte Brasileira – Brasil por Multiplicação", realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), o assunto era a performance do artista Wagner Schwarz, que se apresentou nu na abertura do evento.
Camillo Osório informou que havia indicação de que a performance “La Bête” era realizada por um homem nu. “Entrou na sala quem quis, a mãe que levou sua filha para o evento era uma artista convidada, que não viu nenhum problema em participar da interação, como previa a livre interpretação da obra Bicho, de Lygia Clark”.
O curador lembrou também que “não há crime algum na nudez, até porque essa atuação era completamente desprovida de erotização ou pornografia. A leitura de que isso poderia estimular a pedofilia é completamente descabia”.
Com isso concordou o senador Humberto Costa: “Imagine se um pedófilo iria ficar nu, em público, no meio do museu? Os pedófilos usam gravata, bata de médico, batina de padre, estão dentro de casa, muitos deles vivem no submundo. Eu prefiro ver 200 homens pelados no museu do que os corruptos que fazem parte do atual governo. A corrupção, sim, é um afronta às crianças deste país”.
RECOMENDAÇÕES
Como não havia como enquadrar a produção artística em nenhum dos objetivos da CPI, ficou por conta do convidado Procurador da República, Fernando de Almeida Martins, apresentar sugestões de alteração da Portaria do Ministério da Justiça que estabelece a classificação etária indicativa para exibições ou apresentações ao vivo, abertas ao público.
Martins propôs que museus e galerias estabeleçam e submetam ao Ministério da Justiça as classificações indicativas para as exposições. Ele explicou que a Portaria 368/2014 exclui da classificação as exibições ou apresentações ao vivo, como as circenses, teatrais e shows musicais.
Essa recomendação do procurador gerou polêmica. Os senadores Humberto Costa e Marta Suplicy manifestaram temor com a mudança sugerida. Para Humberto Costa, propostas no sentido de aperfeiçoar a classificação indicativa são bem-vindas, mas, segundo ele, "o país não pode ceder ao desejo de censurar presente em determinados indivíduos prepotentes, autoritários".
Na opinião da senadora Marta Suplicy, o controle de idade em mostras de arte e exposições é um recuo para o país e para a arte brasileira. Marta explicou que é natural que a arte cause impactos, mas ressaltou que ela não pode ser vista como pornográfica, já que se trata da expressão livre do inconsciente do artista e uma contribuição à reflexão sobre a vida individual ou coletiva.
Marta Suplicy criticou a forma como têm sido conduzidos os trabalhos na CPI e chegou a dizer que se retiraria da comissão. A senadora afirmou que a maneira como a CPI tratou curadores e artistas foi desrespeitosa e chocou a população que tem apreço à arte.
“Uma CPI que quer ser séria, chama pessoas sérias, respeitadas, e elas têm sua reputação vilipendiada nos jornais por estarem sendo convocadas em uma CPI sem o mínimo de motivação efetiva. O presidente não deveria se basear em falsas denúncias feitas em redes sociais”, argumentou Marta Suplicy.
Humberto Costa advertiu que a CPI, os parlamentares e o público em geral devem ter cautela na forma como tratam os depoentes. Segundo ele, é preciso que fique claro que os curadores e artistas são pessoas que possuem uma reputação a ser zeladas e não são criminosos.