"A vida é de quem se atreve a viver".


Daymé Arocena, ao interpretar Besame Mucho fez o Cine Brasília explodir em aplausos
Cuba Jazz – a Ilha antenada com o Mundo

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) -

O filme abre com ondas gigantes açoitando a orla norte de Havana, contidas pelo dique estendido nos oito quilômetros do Malecón. A epígrafe de Alejo Carpentier, “Todavia a América vive sob o signo telúrico das grandes tormentas e das grandes inundações...” reforça a primeira leitura da cena – a resistência da Ilha às tormentas naturais e políticas, os furacões e o cerco americano. Novas ondas fecharão o documentário Cuba Jazz, mas dessa vez um garoto observa tranquilo a procela, e uma moça de cadeiras largas caminha no calçadão com ginga, sestro e arte.

A pré-estreia foi no último dia 10 no Cine Brasília.Cuba Jazz, dos diretores Max Alvim e Mauro di Deus, surpreende aqueles que esperavam um panfleto em defesa do regime socialista da Ilha. Muito bem acabado na imagem, som e argumento, o filme traça um sofisticado recorte político e cultural da realidade do país pela voz de duas dezenas de músicos da nova geração do jazz cubano. A composição aberta do roteiro, sem tese pronta, como diz Alvim, ajudou na fluidez do documentário.

Tudo começou quando o publicitário candango Mauro di Deus foi a Cuba com a namorada e descobriu a cena local do jazz. Trouxe um monte de CDs, que compartilhou com o paulista Max Alvim, e deu a ideia do filme. Associados com a produtora musical Yoana Grass, que há dez anos acompanha em Cuba esse nicho, a dupla e sua equipe partiu para a Ilha, conquistou a confiança dos músicos, e gravou mais de 100 horas de conversas, e mais algumas de shows e apresentações domésticas.

São sublimes alguns dos números musicais, como o da baterista Yissí García e o do pianista e compositor Jorge Luis Pacheco. Um deles é epifânico – o da cantora Daymé Arocena (Besame Mucho). O Cine Brasília explodiu em aplausos. 

Ao longo das falas, aprendemos que o jazz cubano é um gênero próprio, não devendo ser confundido com o chamado “latin jazz”. Sua identidade foi definida pioneiramente pelo pianista Chucho Valdés, gênio da raça, em meados dos anos 70. Somos informados de que o jazz não tem ainda espaço nas excelentes escolas de música do país, voltadas só para a música erudita. Alguns entrevistados reclamam da caretice eurocêntrica, mas um deles dá de ombros: “¿Pero, hace falta? Como o samba, o jazz cubano não se aprende no colégio…

Essa nova geração de músicos, que deve mirar Pablo Milanés e Sérgio Rodriguez como modelos, é tremendamente politizada. Igualitária, reconhece as conquistas da Revolução, mas nem por isso deixa de ser crítica. Tem o casco endurecido por 50 anos de bloqueio e pelo “período especial” de penúria inaugurado depois do fim da União Soviética: “A gente usava cabos de telefone para fazer cordas de violão”, diz o guitarrista Chicoy. Mas não é de ficar choramingando: “Dificuldades existem em qualquer lugar”, completa Chicoy. Eles celebram a vida, e o diretor Max Alvim, um fã do Spinoza, soube captar muito bem essa alegria.

Esses músicos têm orgulho de sua cubanidade, e filosofam sobre isso, mas seus olhos e ouvidos também estão voltados para o mundo. Seu veículo para a conexão é a língua franca do jazz, adaptado e muito enriquecido naquelas paragens. No show global do Dia Internacional do Jazz, realizado em Havana no dia 30 de abril, o pianista Herbie Hancock informou que há 125 bandas de jazz no país.

Talvez se possa dizer, levando tudo isso em conta, que as ondas que batem no muro do Malecón se chocam não com uma ilha, mas com o casco de uma nave ávida de sair singrando mares afora.Uma informação nos provoca, a de que algumas autoridades do regime, logo depois da Revolução, reprimiam o jazz por considerá-lo uma arma do imperialismo americano. De fato, o jazz fez parte do arsenal de soft power dos Estados Unidos. Nos anos 60, Louis Armstrong, por exemplo (“Ambassador Satch”), foi enviado pelo Departamento de Estado para a Europa com o objetivo disfarçado de amenizar a imagem do país no momento em que negros eram executados em fogueiras pelos bandos da Ku Klux Klan (“Strange Fruit”).

Mas acontece que o jazz, como ensinou Eric Hobsbawm na sua monumental História Social do Jazz, nasceu como música do povo, de maneira autônoma, sem a “inundação de padrões culturais das classes superiores”. Era natural, portanto, que ela fosse adotada e apropriada pelo povo de Cuba, que compartilha com a gente de Nova Orleans, o berço do gênero, as mesmas raízes étnicas africanas. Essa apropriação, como diz Max Alvim, foi feita de maneira antropofágica, à moda de Oswald de Andrade, mal comparando. Em Cuba as jam sessions (rodas de jazz) são chamadas de “descargas”.

Contra as agruras desses tempos bicudos, aqui ou em Cuba, nada como um descarrego! Cuba Jazz só deve entrar em cartaz em dezembro. Até lá, vai percorrer o circuito dos festivais, a começar pelo Festival Latino-Americano de Roterdã, Holanda, no dia 23 de agosto.

Você não tem direito de postar comentários

Destaques

Mais Artigos