"A vida é de quem se atreve a viver".


A montanha, o mar

João Lanari Bo -
 
Acredite, se quiser: Toque de pecado, o fabuloso filme de Jia Zhangke de 2013, continua sem distribuição na China.
 
Exibido no Festival de Cannes e em vários mercados, Brasil inclusive, permanece invisível no país de origem.
 
Algum nervo sensível do aparato estatal chinês aparentemente incomodou-se com o tom sardônico e pulsional das histórias entrecruzadas do filme, retrato um tanto impiedoso da China contemporânea.
 
Mesmo depois das exaustivas negociações pré-produção com o governo para autorizar as filmagens – sem falar que o poderoso conglomerado estatal Shanghai Film Group Corporation é um dos coprodutores - Toque de pecado continua nas prateleiras dos distribuidores chineses.
 
Enquanto isso, seu longa mais recente, o estupendo As Montanhas Se Separam, concluído em 2015, chega às telas brasileiras.
 
Claro, é absolutamente desproporcional achar que um modesto filme, por melhor que seja, seja capaz de provocar impacto relevante.
 
Ainda mais na sociedade de consumo que se transformou o gigantesco país, governado por uma espécie de capitalismo de Estado autoritário.
 
E, sobretudo, porque o cinema de Jia definitivamente não é um cinema de massa, em qualquer país: são apenas filmes que atraem uma plateia cativa e significativa, fiéis espectadores do diretor. É preciso um alto grau de elaboração teórico-conspiratória para achar que Toque de pecado possa causar algum dano ou rachadura na paz social.
 
Mesmo a assertiva acima de que o filme é um “retrato um tanto impiedoso da China contemporânea” é ponto duvidoso. Afinal, quem consegue representar essa unidade nacional que é a República Popular da China ?
 
Trata-se um uma síntese dificílima (senão impossível) de produzir, dadas as limitações óbvias da linguagem cinematográfica e dado - acima de tudo - a escala e complexidade do objeto, um país com mais de 1,3 bilhão de pessoas espalhadas em 23 províncias.
 
Não existe paralelo no mundo, ainda mais para a nossa combalida razão cartesiana.
 
O talento e o faro de Jia Zhangke são capazes de captar fragmentos lancinantes desse mundo quase infinito, embutindo-os na própria mise-en-scène. Cada plano filmado por Jia, como diz a crítica do New York Times, Manohla Dargis, reflete as (vertiginosas) mudanças sociais e econômicas por que passa a China. Mas não vão provocar revoluções ou anarquia política.
 
As Montanhas Se Separam percorre três épocas desse processo histórico, 1999, 2014 e 2025. Poucos personagens e simplicidade: na primeira delas, um triângulo amoroso estilo Jules e Jim ornamenta a narrativa. O cenário, mais uma vez, é a cidade natal de Jia, Fenyang, norte da China, século 20. Zhao Tao, atriz (e mulher do diretor), oscila entre dois candidatos, um ascendente nouveau riche do capitalismo chinês e um ameno trabalhador da mina local, amigo de infância.
 
A proporção da imagem na tela remete ao 16mm, bitola em que Jia rodou seus primeiros trabalhos nos anos 90. O alpinista social apresenta à amada seu novo carro, um Volkswagen Santana (idêntico ao produzido no Brasil, quando a matriz alemã tinha descartado o modelo há muito).
 
As situações que testemunhamos são simplórias, conduzidas como um folhetim de província. Uma sequência no clube noturno, cenário simbólico da nova era que se anunciava no país, sela o destino: a disputada escolhe o candidato a milionário.
 
Em 2014, o tempo real: Zhao (em sua melhor atuação no cinema) divorciou, e continua em Fenyang. O filho ficou com o pai e foi viver em Xangai. A tela abre e o quadro é cinemascope.
 
O candidato descartado e desgostoso, que havia emigrado para outra província, retorna com mulher e filho, mas gravemente doente. O pai de Zhao morre sentado em uma estação de trem, Zhao desestabiliza-se e a criança vem ao enterro: aeroportos, trem-bala e uma panorâmica do centro de Fenyang sinalizam a nova paisagem da China contemporânea.
 
A densidade psicológica das situações é muito mais visível que em 1999. As relações familiares e interpessoais estão mais complexas, o cinema de Jia mudou e o poderoso ex-marido prepara-se para emigrar para Melbourne, na Austrália.
 
Um rápido comentário inserido em um plano trivial nos informa que o emigrante, na verdade, fugiu de Xangai em 2014 para evitar ser preso por corrupção. Estamos em 2025, em Melbourne. Bebe muito, mora em um amplo apartamento com vista para o mar, e guarda um arsenal de armas em casa.
 
Continua com dificuldades em falar inglês. Seu filho, universitário, não vê a mãe desde que saiu da China com a família, e tem inevitáveis barreiras no diálogo com o pai. Entra em cena sua professora de mandarim, encarnada pela magnífica atriz e diretora taiwanesa (residente em Hong Kong) Sylvia Chang, de 60 anos. Inicialmente mediadora do conflito, acaba atraindo os desejos do jovem.
 
Decidem viajar a Fenyang, para um reencontro com Zhao, e depois a Toronto, onde ela vivia. Na hora de comprar a passagem, hesitam.
 
Que lugar é esse escolhido por Jia ? Afetos que circulam e se rompem, atravessam oceanos e deixam-se influenciar, ao fim e ao cabo, pelas vicissitudes históricas que nascem em um ponto isolado da China ingênua e socialista.
 
O lugar, o território da realização do bem estar capitalista, é idealmente a Austrália, objeto de desejo dos emergentes chineses (e, for that matter, de brasileiros, indianos e outros).
 
A trama costurada pelo diretor nos envolve melodramaticamente por degraus, saltando no tempo e espaço, e impregnando a atmosfera com memórias e decepções, luto e melancolia.
 
No final, a emancipação edipiana: a mãe retorna como professora, um porto efêmero mas seguro.

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