Ainda não se concretizou, mas diante da pressão da Sociedade Amigos da Cinemateca Brasileira, de São Paulo, a Secretaria Especial da Cultura do governo federal prometeu, para esta primeira quinzena de janeiro, a assinatura de um convênio para gerenciar, temporariamente, a entidade e recuperar 40 postos de trabalho.
O convênio, a ser assinado entre governo federal e a Sociedade Amigos da Cinemateca, terá duração de 90 dias e tem como finalidade dar continuidade às atividades básicas (ou primordiais) de preservação do acervo da Cinemateca Brasileira.
Ainda de acordo com a secretaria, o convênio "não suspende o chamamento público para nova organização social que se encontra em tramitação e que deve ter seu edital publicado em breve".
"Festejemos essa vitória suada do Cinema Brasileiro que verga mas não se dobra; que morre, mas renasce mais forte. Assim tem sido a nossa história. Não que nos conformemos com essa condição cíclica que um dia tem que acabar", escreveu em seu Twitter o cineasta Roberto Gervitz, coordenador do grupo SOS Cinemateca.
Moradores entram no processo
Para se prevenir contra qualquer recuo do governo federal, o Tribunal Regional Federal da 3a. Região deu liminar favorável para que a Associação dos Moradores da Vila Mariana (AVM) ingresse na Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Ministério Público Federal (MPF) contra a União e em favor da Cinemateca Brasileira (CB).
Graças a uma petição que detalhou os riscos de explosão dos depósitos dos filmes de nitrato em área residencial, os vizinhos conseguiram ser classificados como assistentes ativos no processo. A associação, que representa mais de 10 coletivos do bairro, recolheu várias provas que foram apresentadas ao Desembargador Federal, Marcelo Saraiva, que entendeu que "a falta da adequada manutenção do acervo da CB pode trazer sérios riscos – de incêndio - para os moradores e frequentadores da região da Vila Mariana, assim como ao meio ambiente em seu entorno".
Com este despacho, a associação foi aceita como assistente no processo e pode atuar ativamente junto ao MPF, afim de que o patrimônio que a Cinemateca salvaguarda seja preservado e medidas efetivas sejam impostas ao Governo Federal para sua preservação e pela sua reabertura imediata.
A CB está fechada ao público há mais de 300 dias e sem funcionários desse o dia 7 de agosto, quando a União tomou as chaves da Associação Roquette Pinto, Organização Social que fazia a gestão do local através de um contrato encerrado em dezembro de 2019 que não foi não renovado. Todos os 41 funcionários técnicos que trabalhavam na instituição foram demitidos seis dias depois.
Em busca de provas
Em busca de provas para convencer o Juiz da urgência dessa reabertura, descobertas preocupantes vieram à tona: a empresa contratada para fazer a manutenção do prédio tombado é uma Eireli (tem um único sócio). A limpeza ficou a cargo de uma companhia da área hospitalar. Nenhuma das duas é qualificada para assegurar a manutenção do arquivo. Além do mais, desde dezembro de 2017, a Cinemateca não teve laudo de vistoria estabelecido pelo Corpo de Bombeiros.
Os moradores, que há meses monitoram o prédio, dizem que lá só trabalham dois vigias: um na porta da frente e outro na de trás. “Todos estamos cientes da importância que a Cinemateca tem para o cinema brasileiro e latino-americano. E a memória do nosso bairro está depositada aqui. Filmes de antigos moradores, documentos, fotografias... A gente não quer perder isso.”
Os moradores pedem judicialmente a visita do juiz ao local, para que ele possa entender a real importância do que está em risco. A Associação Paulista de Cineastas (APACI), que também participa da ação como "amicus curiae" e realizadores que militam pela causa foram encarregados de municiá-los com uma “petição audiovisual” que será arrolada aos autos do processo.
Caráter de urgência
O caráter de urgência acolhido na decisão do Desembargador Marcelo Saraiva se impõe sobre a necessidade do retorno dos técnicos especializados à Cinemateca para a manutenção e manuseio dos filmes de nitrato, que possuem elevado potencial de autocombustão. Além dos filmes de acetato, que podem sofrer a "síndrome do vinagre", processo de deterioração química que pode se disseminar pelo ambiente através dos gases expelidos e contaminar todo o acervo, acelerando a degradação dos demais rolos de filme.
“Ao Desembargador lembramos as piores memórias do incêndio ocorrido na Cinemateca Brasileira em fevereiro 2016, quando, durante a crise administrativa, o quadro de funcionários que cuidavam de seu acervo foi reduzido a duas pessoas. As condições físicas que provocaram o incêndio naquela época são similares às que podem provocar o atual: a autocombustão dos filmes de nitrato eliminou 1.005 rolos do acervo e da história nacional, consumidos pelo fogo, em 2016. Hoje o acervo audiovisual é composto por mais 250 mil rolos de filmes e um milhão de documentos relacionados ao audiovisual”, relatam os defensores da CB.
Chegada do verão
Como todo ano na cidade de São Paulo, o verão é marcado por eventos climáticos que se agravam. Em fevereiro de 2020, uma chuva torrencial deixou a cidade parada por 24 horas. Em junho, no outono, fortes chuvas atingiram a capital causando dezenas de derrubadas de árvores na Vila Mariana. Em evento recente, há uma semana, dia 1º de dezembro, mais uma vez, chuva forte, ventos acima do normal provocaram queda de energia e de várias árvores na Vila Mariana. Uma delas, atingindo um veículo com uma mãe e dois filhos, provocando a morte da mãe. Além disso, vale lembrar que a Cinemateca Brasileira não conta com Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB) e quando ocorrem as quedas de energia, as câmaras de refrigeração e climatização dos filmes ficam comprometidas.
Mais de 100 produtoras cobram do governo federal a implementação de plano emergencial para a Cinemateca
No dia 17 de dezembro, uma carta assinada pelo movimento S.O.S. Cinemateca-APACI e a AVM, até o momento apoiada por mais de cem produtores audiovisuais, responsáveis pela produção de 1,5 mil filmes, foi entregue à Secretaria do Audiovisual. Isso porque apesar das promessas do Secretário do Audiovisual, Bruno Côrtes, de que a Sociedade Amigos da Cinemateca seria contratada para executar um plano de trabalho emergencial de gestão do acervo, transcorridos quatro meses desde a entrega das chaves, a Cinemateca continua abandonada. A recente exoneração de mais um Ministro do Turismo e o infarto do Secretário da Cultura, Mário Frias, pressagiam mais imobilismo.