Antônio Carlos Queiroz (*) –
Por acaso eu já contei para vocês que uma vez cheguei perto do Fellini? Não contei? Conto agora!
Eu me chamo Antônio Carlos, sou jornalista, mas quem quiser pode me chamar de Orlando. O nome da minha cidade natal, Anápolis, é quase o mesmo da capital do Estado de Maryland, uma importante base naval nos Estados Unidos. Talvez essas coincidências possam dar um molho à história mais adiante.
Estávamos em 1974, eu tinha 17 anos e trabalhava no Museu Histórico de Anápolis, que ajudara a organizar havia dois anos integrando a equipe do professor Jan Magalinski. Havia chegado na cidade um casal de italianos, hóspedes do Hotel Itamaraty. Ele era engenheiro hidráulico e fora contratado para perfurar o poço artesiano da futura fábrica de cerveja, a Cebrasa, hoje importante unidade da Ambev. Ela era casalinga, do lar. Como não tinha muito o que fazer, a não ser bater perna pelo centro, ou ir pro cinema, a mulher sempre aparecia no Museu, geralmente à tarde, para passar o tempo. Eu entendia alguma coisa de italiano, de tanto ter lido o Topolino, a versão italiana do Mickey e, por isso, era comigo mesmo que ela conversava. Não me lembro exatamente sobre o quê, além das maravilhas da Manchester goiana, nas o fato é que essas conversas se repetiam. Eu ficava ansioso para a próxima. Por que razão?
A dona italiana era enorme! Muito branca, perfumadíssima, sempre trajando vestidos floridos claros. Quando ela chegava, o Museu era inundado por seu perfume. A gente se sentia num campo de alfazemas, juro! Arrebentando o decote, meu Deus, due montagne contrapostte, um desfiladeiro onde eu me imaginava afogando. Mas só imaginava, um pirralho com pensamentos de alfazema!
Hollywood - Anápolis tinha na época quatro grandes salas de cinema e sempre que possível eu corria para uma delas. Mesmo chegando atrasado, entrava, esperando a sessão seguinte para completar a montagem do filme. Anos antes eu havia conhecido pessoalmente a atriz texana da Broadway, Mary Martin, que morava na cidade e tinha uma butique de roupas no beco do Samdu, perto do Cine Imperial, pelo qual eu sempre passava depois do colégio. O filho de Martin, o ator Larry Hagman (Jeannie é um Gênio, Dallas), sempre a visitava nas férias. Dizem que ela hospedou também o Tony Curtis, o Ronald Reagan e outros bambambans de Hollywood. Tudo isso está contado no filme Hollywood no Cerrado, de Tânia Montoro. Para não esticar demais a conversa, digo que naquela época eu já era um cinéfilo.
Mas, Antônio Carlos, por que você escreveu esse último parágrafo? Respondo: porque um dos meus papos com a dona italiana foi sobre cinema e sobre o Fellini. E daí ela me contou que o seu filho eletricista trabalhava com o Fellini na Cinecittà! Putz! Aquela informação me deixou radiante e me fez sentir importante. Imagine, eu era amigo da mãe de um cara que trabalhava com o monstro de Rimini, o Federico, o Fefê!
Esse sentimento cabotino cresceria naquele mesmo ano (ou será que foi no ano seguinte, 1975?), quando vi o Amarcord. Durante anos, na memória ou nos sonhos, eu confundi a figura da mulher dos vestidos floridos no Museu com a moça da tabacaria (Maria Antonietta Belluzi), mas misturada com a Gradisca (Magali Noël), com a Saraghina (Eddra Gale), a Carla (Sandra Milo) e a Claudia (Claudia Cardinale) do Oito e Meio, e ainda com a Sylvia (Anita Ekberg) de La Dolce Vita. Óbvio, eu era o Titta (Bruno Zanin), o Guido moleque (Marco Gemini), o Guido quarentão e o Marcello (Marcello Mastroianni). Algum tempo depois, já em Brasília, eu me identifiquei, por corporativismo, é claro, com o Orlando jornalista de E la nave va.
Centenário - Hoje, 20 de janeiro, quando comemoramos o centenário de Fellini, faço um balanço de sua relevância para a minha modesta concepção de arte e também da vida. Por que será que Fellini continua me tocando mais do que o Vittorio De Sica, o Ingmar Bergman, o Kurosawa? Acho que é porque ele contou histórias muito parecidas com as que eu mesmo vivi.
As suas lembranças (junto com o nojo) da época do fascismo são semelhantes às que tenho da ditadura militar: as paradas do Sete de Setembro, as peças Eu te amo, meu Brasil de Dom & Ravel e Pra Frente Brasil dos Incríveis, as bobagens das lições de Moral e Cívica, os jingles da Copa do Mundo, as notícias da Secom da presidência da República no Canal 100… Tudo isso me dava gastura, afinal amenizada pelas sátiras fellinianas aos asseclas do Mussolini e seus rituais.
Por outro lado, as gozações contra a Igreja Católica sempre me divertiram, embora, diferentemente de Fellini, eu não tenha sofrido nem de longe a repressão religiosa que ele parece ter experimentado (a julgar por seu deboche anticlerical), até porque me afastei da Igreja cedo, quando tinha uns 14 anos, por causa de uma briga pessoal com Javé e não com os seus embaixadores no Colégio São Francisco, excelentes professores.
A segunda volta de Jesus Cristo de helicóptero nos céus de Roma em La Dolce Vita ainda me faz rir, assim como o desfile de alta costura para os cardeais em Roma de Fellini. Aquelas abas dos chapéus das freiras, imitando as asas do Espírito Santo, os dois padres púrpuros de patinetes, quem não se comove? E o batismo de Marcello pela Sylvia na Fontana de Trevi? Só não acha sublime quem não tem coração!
Os sonhos - Os teóricos gastaram rios de tinta e pixels para definir Fellini como o “documentarista do sonho”, na concisa e feliz expressão do Gláuber Rocha. Com a ajuda do próprio Fellini, diga-se, esses teóricos jogaram essa definição na conta de sua filiação à psicanálise junguiana. Durante anos, Fellini acordava de manhã e anotava os sonhos, desenhando-os.
Ao jornalista Gideon Bachmann, disse que “nada é mais honesto do que um sonho”. Mas a frase veio depois da observação de que “afinal, é o sonhador quem faz o sonho”, o que podia significar que ele tinha algum controle sobre a sonhação. Pouco antes havia dito que as suas histórias “nascem em mim, nas minhas memórias, nos meus sonhos, na minha imaginação”.
Ettore Scola, amigo e discípulo, contou no filme Que Estranho Chamar-se Federico que uma das fontes de “inspiração” de Fellini eram as intermináveis conversas que ele mantinha com todo tipo de gente do povo, às vezes dando carona para putas, pintores e vagabundos que encontrava nas ruas noite afora.
Tendo sido um dos roteiristas de Roma Cidade Aberta e Paisà de Roberto Rosselini, e um dos precursores e depois realizadores do neorrealismo italiano, teria Fellini, depois de La Strada e Noites de Cabíria, deixado de lado o compromisso de retratar a realidade social, econômica e política, com a luta de classes e tudo, para se perder em sonhos, alguns grotescos, como acusam alguns de seus críticos?
“O mais político” - Euclides Santos Mendes, doutor em Multimeios pela Universidade de Campinas, defendeu em sua tese de 2013 que o contrário é que é verdadeiro: Fellini teria reinventado o neorrealismo, com novos olhos, novas cores. “Ao furar o bloqueio culturalista italiano, Fellini alcançou a outra margem do tempo, em que a realidade, o espetáculo e o sonho se fundem numa catarse narcisista, pois são objetos da formação de um indivíduo, um Wilhelm Meister italiano, cuja missão cinematográfica o conduziu aos anos de aprendizado – período de enfrentamento de ambiguidades e, por isso, processo de contínuas transformações – e aos de experiência – que se revelam como tempo de peregrinação à aurática matriz neorrealista. O neorrealismo foi um fenômeno que influenciou a formação de Fellini e do cinema moderno italiano, dando-lhe a feição fenomenológica de um espelho fragmentado da realidade”, escreveu Mendes. A seguir Mendes acrescenta a observação de Gláuber Rocha, segundo a qual Rosselini “documenta as ruínas” enquanto Fellini, “documentarista do sonho”, “o recria magicamente através de cenografias e atores; o sonho é a projeção de sua Câmera Olho”.
Nessa toada, eu cogito, a fantasia do transatlântico Rex, orgulho máximo da pátria e do regime, construído de papelão no Teatro 5 da Cinecittà, e o mar composto de lonas pretas de plástico, não seriam afinal um jeito de denunciar da maneira muito prática e realista – mas com o efeito de distanciamento brechtiano – a farsa que foi o regime fascista?
A cineasta Lina Wertmüller, feminista, comprometida com um programa de esquerda, disse de Fellini em “L’avventurosa storia el cinema italiano raccontata dai suoi protagonisti – 1960-1969” de Franca Faldini e Goffredo Fofi (1981) o seguinte: “Federico deu-nos os mais significativos traços e graffiti da nossa história nos últimos 20 anos. Ele diz que não está preocupado com a política e que não está interessado em temas fixos ou projetos ideológicos, mas ele é, no final de contas, o mais político e sociológico, eu acredito, de nossos autores”.
Se Wertmüller está correta, significa que Federico Fellini retratou a realidade de maneira fiel, embora com lentes próprias, algumas delas herdadas, outras polidas ao longo do tempo por ele mesmo. São lentes óbvias: as experiências do menino reprimido pela Igreja em Rimini, sua cidade natal, os espetáculos da commedia dell’arte no picadeiro do circo, a ironia que brotou do confronto com a Igreja e com o fascismo, os anos de aprendizado como cartunista e contador de histórias em quadrinhos, os anos de roteirista do novo cinema italiano, o talento para gerenciar uma equipe de trabalhadores como se fosse uma espécie de Michelangelo e, muito relevante, a sua vocação poética.
Na entrevista que deu à revista Rolling Stone, em 1984, Fellini disse que a acusação de que ele teria trocado o neorrealismo pelo artifício era uma bobagem. “É que nem você acusar alguém de passar dos 20 para os 40 anos. Esse é um caminho que você tem de seguir. O que o pessoal chama de artifício é o único meio de que disponho para expressar a minha realidade interior. É que nem você acusar quem faz a pintura de um campo de usar tintas em vez de capim verdadeiro”.
Já em 1986, na entrevista a Bert Cardullo, Fellini negou ter uma queda pelo “grotesco” e o “exagerado”. Disse que até poderia ser exagerado, mas não de maneira intencional. “Eu fico encantado quando cruzo com um rosto expressivo, embora bizarro. Afinal, eu sou um caricaturista, e tenho de aceitar a limitação que isso me impõe”.
Fellini, “mentiroso de nascença”, captou o real de maneira fiel, com todas as suas belezas e feiúras. E com os seus absurdos inerentes, absurdos porque inexplicáveis, como o comentário de Orlando sobre as excelentes propriedades do leite das rinocerontas no final de E la nave va! Fellini fez o cinema que só os poetas são capazes de rodar.
Federico Fellini continua marcante até hoje porque carregou nas tintas, sem receio, mesmo deixando cenas envoltas em neblina, para que os olhos do espectador encontrem uma solução. Em 1993, depois de receber o Oscar pelo conjunto da obra, um jornalista perguntou que sensação ele tinha por vir a ser recordado pela palavra “felliniano”. “Sempre sonhei em virar um adjetivo quando crescesse. Estou lisonjeado. O que os americanos pretendem dizer com ‘felliniano’ eu posso imaginar: opulento, extravagante, onírico, bizarro, neurótico, contador de lorotas. Bem, contador de lorotas é uma expressão justa”.
Nino Rota - Ah, antes de terminar! Fellini dizia não gostar de música, por considerá-la a mais completa das artes, sem margem para a ação dos ouvintes, que o deixava paralisado. A confissão pode ser mais uma de suas cascatas, mas isso nunca constituiu um problema. Ele simplesmente terceirizou a música para o grande compositor Nino Rota, cujas composições, diz a crítica (simpática), sempre entrou em seus principais filmes na condição de uma atriz especial. É impossível falar de Fellini sem falar de Nino Rota, eles são unha e carne. Ensaio de Orquestra, de dezembro de 1978, um dos filmes mais explicitamente políticos de Fellini, foi a última parceria dos dois, antes da morte de Rota, três meses após o seu lançamento.
Pessoal, eu acabei não encontrando nenhum mote para enfiar nesses meus comentários uma história envolvendo a capital de Maryland, Annapolis. Fica para a próxima vez.
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(*) Antônio Carlos Queiroz, jornalista.