João Lanari Bo –
Martin Scorsese e Robert De Niro há tempos organizam um mundo à parte, onde regras biológicas e cerimoniais sobrevivem numa prática congelada no tempo, embora sujeita à deterioração física – um mundo mafioso, ambientado nos Estados Unidos, carregado de oriundis.
O Irlandês, recém lançado nos cinemas, é baseado no livro de memórias do investigador e advogado Charles Brandt, I Heard You Paint Houses de 2004, no qual relata o caso de Frank The Irishman Sheeran, um sindicalista com ligações ao crime organizado que, pouco antes de falecer em 2003, confessou ter assassinado o líder sindical Jimmy Hoffa, desaparecido em 1975.
O filme atualiza a cosmologia scorceseana para um mundo onde os atores habituais das produções anteriores reaparecem, começando por De Niro, também sujeitos à deterioração do tempo, à alteração dos respectivos estatutos biológicos, arrastando de roldão a gramática cinematográfica: se em Os Bons Companheiros, de 1990, e Cassino, de 1995, o ritmo era frenético e excitado, em O Irlandês o passo é lento e naturalista, carregado de situações leves e tempos mortos, com uma circulação de afetos estranha à violência espetacularizada.
Joe Pesci, ator icônico desse universo, inscreve seu corpo nessa transição e dá o tom: irascível e impetuoso, com os nervos à flor da pele e capaz de metralhar um companheiro na mesa de bar dos filmes anteriores, ele amadureceu e se transformou em um capo reservado e com autoridade moral, árbitro de disputas e mantenedor dos códigos de honra que balizam as relações interpessoais da comunidade mafiosa.
Esse mundo é sobretudo masculino, branco: De Niro, formidável ator, é o narrador da história em flash-back, é o outro irlandês que assimilou os códigos de comportamento, é Frank Sheeran, condutor da evolução dos acontecimentos, rusgas e sentenças, execuções e perdões: um assassino frio, preocupado com valores familiares, mas capaz de matar a contragosto alguém que prezava, sob o olhar crítico da filha.
Harvey Keitel é outro nesse elenco dream team, embora com participação reduzida; sua presença parece pensada para ampliar o espaço icônico da representação, para permitir que ele, Joe Pesci e Bob De Niro sentem-se na mesma mesa para julgar e decidir sobre eventual transgressão do “Irlandês”, um pilar a mais na sustentação dramática em um filme onde os atores são personagens em si mesmos.
A novidade nesse mundo diegético estruturado pelas regras de ouro da máfia é a inserção do personagem-histórico Jimmy Hoffa, o poderoso presidente do Sindicato de Transportes durante décadas, englobando caminhoneiros e estivadores, encarnado por outro formidável ator e new comer no universo scorceseano, Al Pacino.
Pacino/Hoffa é dos personagens mais instigantes e escorregadios da história recente americana; Jack Nicholson foi outro ator de ponta que representou esse sindicalista/populista que detinha um assombroso poder financeiro, graças aos fundos coletivos dos sindicatos, mantinha relações íntimas com mafiosos e políticos, e acabou não escapando da perseguição iniciada por Robert Kennedy, pegando cadeia por fraude e suborno.
Hoffa, em suma, introduz uma inédita concretude histórica a esse filme de gênero, filme de máfia; sua ascensão e exercício de poder beneficiou-se da proteção dos mafiosos, que pagava com financiamentos para expansão dos negócios de seus protetores, em Las Vegas, por exemplo – apesar de ser um corpo estranho nesse universo pautado por um código de honra extra-legal, Hoffa se encaixou no clientelismo ritualístico mafioso, cumprindo com gosto todos os ritos de passagem biológicos, batismos, casamentos e funerais.
Sua morte em 1975, um desaparecimento até hoje não esclarecido – a confissão de Sheeran acrescenta mais uma versão ao drama – encerrou de modo patético uma narrativa lenta e pausada, que tem como eixo uma viagem (quase) entediante de carro que Joe Pesci e De Niro, acompanhado das esposas, fazem a Detroit para acompanhar o casamento da filha do advogado do grupo, com pequenas paradas para coleta eventual de pagamentos, pontuada pelo assassinato seco e desdramatizado de Hoffa pelo amigo Sheeran.