João Lanari –
Estamos todos juntos, nessa nova forma de compartilhar o comum e o sensível que é a internet. Em 20 e poucos anos de web, o uso crescente que fazemos dos serviços de “big data”, a presença maciça das ferramentas digitais na produção e difusão do conhecimento, no comércio e na reinvenção das relações afetivas, impuseram-se de forma avassaladora.
A formação da subjetividade política dos jovens que se relacionam digitalmente entre si e com tudo mais aponta para outra dimensão do que entendemos como “vida política”: pela disponibilidade que têm de construir as próprias histórias e vivências, e, portanto, pela facilidade de passar ao largo das narrativas tradicionais — o “um para muitos” — esses novos “sujeitos” da vida política irão gerar em tempo “digital” novas ofertas e demandas, novos consensos e dissensos, novas organizações e dispersões.
A chamada “revolução sem líderes” — ideia que assusta o “establishment” político, dos marxistas ortodoxos aos plutocratas reacionários — é um dos supostos paradoxos gestados nesse novo mundo “instável”, policêntrico e datacêntrico, em que submergimos cada vez mais. Um mundo “instável” sugere uma governança “instável”, proposição ousada, sem dúvida.
Coringa, a mais recente superprodução hollywoodiana, atualiza essa instabilidade escavando – arqueologicamente – uma outra mídia enterrada, história em quadrinhos. A ação se passa no passado, não há celulares ou memórias digitais: só há o boca-a-boca, essa rede social poderosa e perigosa, estimulada pontualmente pela televisão aberta, outra mídia soterrada, que galvaniza a revolta em torno do não-líder excluído e menosprezado, o palhaço Arthur Fleck.
Psicólogos e psiquiatras esmeraram-se em reconstruir o passado médico do personagem-paciente, procuram encontrar uma razão que dê conta de entender esse comportamento, digamos, errático, do “Coringa” que dança como um cisne esquizofrênico. Esse invólucro faz parte da produção, do cálculo da produção, assemelha-se aos ecos reverberativos do discurso televisivo inserido na história. O pacote “saúde mental” chega para nós, espectadores e consumidores culturais, como um aditivo que energiza a fruição que é acompanhar o soerguimento do anjo-torto, filho adotivo de Penny Fleck, amante do mogul Bruce Wayne e psicótica.
A mediação de Murray Abraham (Robert De Niro) é a pá de cal que solapa qualquer expectativa de composição de Arthur com o real. Murray é o puro entretenimento, ou melhor, o capital travestido de entretenimento. A conscientização desse oponente desvela para o Coringa um reino de sensibilidade que havia contaminado a esfera social desde o momento em que ele, maquiado de palhaço, reage e fulmina três empregados de Bruce Wayne que resolveram espanca-lo no metrô.
Não há internet nessa partilha do sensível, mas há o contágio imediato e incontrolável. Os novos sujeitos se tornam conscientes de suas subjetividades, a subversão é irremediável. Só resta a adesão.
Nesse momento e nessa hora, Coringa diz para que veio.