"A vida é de quem se atreve a viver".


Cena de "Vidas duplas", filme de Olivier Assayas, com Guillaume Canet, Juliette Binoche, Vincent Macaigne, Nora Hamzawi, Christa Théret, Pascal Greggory, Lionel Dray e Sigrid Bouaziz.
Cinema - Vidas duplas e paralelas

João Lanari Bo –

A pergunta que não quer calar: qual é sua opinião, prezado leitor, sobrevive o livro ou caminhamos para a desmaterialização do objeto, para o livro digital, o livro sem suporte físico, virtual?

O novo filme de Olivier Assayas - um dos melhores críticos que escrevia no Cahiers du Cinema, passando para a direção desde os anos 80 – trata obsessivamente dessa questão. Os personagens principais circulam nesse limiar tecnológico: Alain é editor de uma centenária editora, ansioso com o futuro cibernético; Leonard é um escritor prolífico, enredado na “autoficção” de si mesmo, confuso entre o público e o privado (característica dos tempos de internet); Laure, amante de Alain, é conselheira (e entusiasta) de novos negócios virtuais; Selena é a mulher de Alain, atriz e amante de Léonard: e Valérie, companheira de Léonard, assessora um político honesto e bem intencionado (mas que se deixa apanhar em um momento de fraqueza, arruinando sua eleição, por conta da ...internet).

“Vidas Duplas” evolui nessas interseções afetivas, como se esperaria de uma narrativa francesa, mas com um adendo: todos não param de falar sobre o que se pode esperar desse novo mundo, o mundo do intangível digital, que ameaça o sagrado hábito de leitura (típico também dos franceses) em sua base objetiva, o suporte livro. E mais: os algoritmos perversos irão guiar os leitores distraídos e suscetíveis? O fetiche-livro caminha, assustadoramente, para tornar-se um obscuro objeto de desejo?

Entrelaçando todas essas vidas duplas com o núcleo temático do filme, Assayas deixa pistas fugazes sobre a transição espetacular que atravessamos, depois de três décadas do uso disseminado das ferramentas digitais, em particular a internet. O que sobra de humano, melhor dizendo, daquilo que chamamos “realidade”? Cada personagem tem um fundamento interior que o capacita a lidar com essa vertigem cultural, de inserir-se na nova vida digital que nos toma de assalto diariamente, em velocidade crescente. As opiniões expressas ao longo do filme evoluem de acordo com as situações vividas, traem interesses subjetivos ocasionais, chocam-se com o que resta do mundo analógico.

Ao fim e ao cabo, a impressão é que é a velha literatura, afinal, algo que parece ser do agrado geral. Assayas revelou que seu desejo era trazer o espectador para uma conversa atual, viva – os personagens exprimem opiniões diferentes, que são em seguida postas em questão por outros, na mesma conversa. A démarche é tão rápida que muitas vezes é difícil a compreensão dos diálogos. Nada está estabilizado, tudo aguarda uma resolução, mas as palavras e seu uso seguem firmes como instrumento de comunicação e expressão.

Talvez a única personagem coerente nesse mundo em mutação é Valérie, que não tem amante e se irrita em um dos encontros sociais, depois de uma jornada dura de trabalho: seus convidados insistem no valor da construção midiática da imagem dos políticos, ao qual ela contrapõe a ética e a seriedade dos objetivos. Não é por acaso que o filme termina com ela revelando a Leonard que está grávida, a despeito da vida sexual atrofiada que levam. A realidade volta a fazer sentido, volta à materialidade.

Vida que segue, enfim.

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Filme: Vidas duplas

Data de lançamento: 18 de abril de 2019 (1h 47min)

Direção: Olivier Assayas

Elenco: Guillaume Canet, Juliette Binoche, Vincent Macaigne, Nora Hamzawi, Christa Théret, Pascal Greggory, Lionel Dray e Sigrid Bouaziz.

Nacionalidade: França.

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