Nusch, née Maria Benz, musa dos surrealistas e comunistas franceses, inspirou o poema “Liberté”, de Paul Éluard, panfletado pela RAF para animar a resistência contra os nazistas
O sotaque alemão de uma liberdade francesa

Antônio Carlos Queiroz (ACQ)  –

Qualquer criança sabe que a liberdade é uma especialidade francesa. Mesmo a liberdade americana foi uma doação dos franceses, como já disse o Millôr Fernandes. Construída pelo Gustave Eiffel, o mesmo da torre, é um monumento de concreto e cobre fincado numa ilhota do porto de Nova York, com 46,5m de altura sem o pedestal, um nariz de 1,37 metros, e umas coisas pontudas na cabeça que ninguém sabe pra que servem. Um detalhe, também assinalado pelo Millôr, é que até agora a liberdade não penetrou no território dos Estados Unidos.

Por falar em nariz, todo esse nariz de cera é só uma desculpa para puxar a conversa em que farei a demonstração paradoxal de que, na verdade, é de origem alemã uma das mais famosas figurações da liberdade francesa, o poema Liberté, de Paul Éluard, pioneiro do surrealismo e militante comunista, para quem o amor e a alegria são forças revolucionárias.  

J'écris ton nom - Se você não sabe, em meados de 1942, milhares de cópias do belíssimo poema de 21 estrofes, no qual Éluard cataloga quase 70 objetos e lugares físicos ou só afetivos em que escreve o nome Liberdade, foram panfletados sobre o território francês pela aviação britânica para animar a resistência aos invasores nazistas.

Um brasileiro, o pintor pernambucano Cícero Dias, foi quem levou clandestinamente o poema para a Inglaterra, onde o pintor e poeta Roland Penrose se encarregou de o repassar ao comando militar conjunto dos britânicos e franceses. Continuava brilhando então a consigna com que o general De Gaulle havia inaugurado, em junho de 1940, a série de programas que dirigia à França ocupada desde uma saleta da BBC de Londres: "Quoi qu'il arrive, la flamme de la résistance française ne doit pas s'éteindre et ne s'éteindra pas".  (“Aconteça o que acontecer, a chama da resistência francesa não deve se apagar e não se apagará!”)

Liberté pode ser lido aqui no original e na tradução feita por Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira.

O poema pode ser ouvido aqui na voz do próprio Paul Éluard.

Evidência 1 - Apresento agora a primeira evidência da origem alemã do poema Liberté:

1) O próprio Éluard justificou a composição do poema nos seguintes termos: “Eu escrevi esse poema no verão de 1941. Ao compor as primeiras estrofes (…) eu pensei revelar para concluir o nome da mulher que eu amava, a quem esse poema  foi dedicado. Mas logo percebi que a única palavra que eu tinha em mente era a palavra liberdade. Assim, a mulher que eu amava encarnava um desejo maior do que ela. Eu a confundia com a minha aspiração mais sublime. E essa palavra, liberdade, só estava em todo o meu poema para eternizar uma vontade muito simples, muito cotidiana, muito aplicada, a de nos livrarmos do ocupante (nazista). A ideia de liberdade, essa ideia indispensável, é um ideal sem limite e, no meu caminho, cada um dos passos que damos deve ser uma libertação”.

2) Quem era a mulher amada a quem Éluard dedicou o poema? Maria Benz, a Nusch, nascida em 1906 em Mulhouse, distrito do Reichsland da Alsácia-Lorena, então parte do Segundo Reich Alemão, retomada em 1919 pela França nos termos do Tratado de Versailles. Depois de tentar carreira em Berlim, Nusch acabou indo para Paris, onde, em 1930, conheceu Éluard junto com René Char. Ali tornou-se modelo e musa dos surrealistas e depois da  intelectualidade progressista, que incluía René Char, André Breton, Louis Aragon, Joan Miró, Roger Penrose, Salvador Dalí, Dora Marr, Pablo Picasso, Man Ray etc.

Fica demonstrado, assim, que o famoso poema de Éluard foi dedicado inicialmente a uma mulher alemã, Nusch, e só depois a uma francesa, a Liberdade. 

3) Reforça o argumento uma história alternativa à de Paul Éluard, contada dez anos após a troca das palavras pelo crítico literário Alain Joufroy. Segundo ele, no verão de 1941, o casal Éluard, George Bataille e o próprio Joufroy foram convidados para um jantar na casa do crítico de arte e editor grego Christian Zervos e sua mulher, Yvonne. Durante uma partida de bridge, já mamados, Éluard briga com Nusch e vai embora intempestivamente. No dia seguinte reaparece com o poema de amor.

Sempre segundo Joufroy, Zervos e Bataille teriam então sugerido que Éluard trocasse o nome de Nush, a última palavra do poema, por Liberté. Os detalhes dessa mudança crucial foram reunidos pela linguista Sabine Boucheron e podem ser conferidos neste artigo

Evidência circunstancial - Isso posto, apresento agora o pulo do gato da minha tese. A hipótese que arremesso, sem qualquer prova mas com grande convicção, é que o poema de Éluard foi inspirado nos versos de um poema do alemão Wilhelm Müller, Ungeduld (Impaciência), musicado por Franz Schubert para o ciclo dos lieder de Die Schöne Müllerin (A Bela Moleira), composto em 1825.

Tal como faria Éluard mais de 100 anos depois, Müller elenca objetos e lugares onde gostaria de gravar e anunciar não o nome da amada mas a frase “Dein ist mein Herz, und soll es ewig bleiben” (“Teu é o meu coração e assim será para sempre”).

O tema de Ungeduld e Liberté é, portanto, o mesmo, e há várias coincidências textuais. Tanto num como no outro o eu lírico grava  ou escreve a declaração de amor e o nome da amada “na casca de cada árvore” (Müller) e “nas árvores” (Éluard); nas pedras; “em cada folha branca” (Müller) e “em todas as páginas brancas” (Éluard”) etc.

Você pode ler aqui o texto original e uma tradução em português de Ungeduld.

Que Paul Éluard conhecesse as canções de A Bela Moleira é uma conclusão quase trivial. Na Paris daquela época, qualquer pessoa culta devia conhecer o Schubert. Além do mais, era então muito famosa uma das grandes intérpretes da Bela Moleira, a mezzo-soprano/soprano Germaine Martinelli, que cantava a peça em francês. Apenas seis anos antes da composição do poema de Éluard, ela havia gravado o ciclo em disco, acompanhada do pianista Jean Doyen. E foi justamente em 1941 que deixou a cena para lecionar no conservatório americano de Fontainebleau, onde brilhava a célebre musicista Nadia Boulanger.

A gravação de Ungeduld na voz de Martinelli pode ser ouvida aqui

Espero ter demonstrado com essas modestas anotações que uma das mais fabulosas manifestações da liberdade francesa, o poema Liberté de Paul Éluard, composto para inflamar La Résistance contra os agressores nazistas, foi inspirado por uma composição do Schubert e por uma encantadora e serelepe moça alemã, que, dizem, nunca perdeu o sotaque materno.

Um alerta - Antes que algum engraçadinho suponha de maneira apressada que eu esteja jogando aqui com uma ironia histórica, opondo uma alemã aos invasores alemães, como se eu não distinguisse nacionalidade de posição política, conto uma hilária cena do filme Círculo de Fogo (Enemy at the Gates), do Jean-Jacques Annaud, em torno da Batalha de Stalingrado. A certa altura, o comissário soviético Danilov (Joseph Fiennes) está tentando recrutar para o serviço de tradução do Exército Vermelho uma combatente civil, Tânia Chernova (Rachel Weisz), que havia se graduado em Berlim. Chernova percebe que o comissário estranha a quantidade de livros em alemão na sua estante, e diz que ele pode pegar alguns emprestados, se quiser. Danilov vacila. Diz não saber qual seria a reação dos camaradas no quartel se ele chegasse com uma braçada de livros do Goethe e do Schiller. Ferina, Tânia responde: “Tem alguns do Marx também, uai”.

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