Santo Antônio afogado entra aqui de gaiato, para lembrar que a derrubada de estátuas marca o fim dos ciclos históricos desde priscas eras, como acontece agora com os monumentos que homenageiam os senhores escravocratas.
Ora, direis, derrubar estátuas!

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Uma onda de iconoclastia varre o mundo, dessa vez para derrubar as estátuas de colonizadores escravocratas e figuras históricas do racismo.

No domingo, 7 de junho, manifestantes antirracistas derrubaram em Bristol, no Sul da Inglaterra, a estátua do traficante de escravos Edward Colston (1636-1721), e depois jogaram a peça num rio que corta a cidade. Na Antuérpia, a prefeitura retirou na manhã da terça, 9, uma estátua do rei Leopold II, genocida de povos no Congo Belga, depois que ela foi danificada por militantes locais do Black Lives Matter. Estima-se que esse rei dos belgas massacrou 60 milhões de pessoas!

A palavra iconoclastia é derivada de dois termos gregos, icon, imagem, e klastein, quebrar. A história das mudanças sociais pode muito bem ser contada através da derrubada de estátuas e de símbolos dos poderes que também caem ou que estão se enfraquecendo.

Há uma discussão mal-humorada sobre o assunto. O escritor angolano José Eduardo Agualusa, por exemplo, é contra detonar as estátuas. Ele acha que, por piores que sejam as lembranças que levantam, o melhor é deixá-las de pé para que se preserve a memória. “Quanto a mim, desagradam-me todas as estátuas, mas também me desagrada o seu derrube; não por reverência, ou por não gostar de festas, mas por ver nesse gesto uma ofensa à memória. Os erros fazem parte da História e merecem ser recordados em público, na pedra dura ou em bonze feroz, tanto ou até mais do que os acertos — para que não se repitam”, disse ele na coluna de O Globo, depois que a prefeitura de Los Angeles removeu, em novembro e 2018, uma estátua do navegador Cristóvão Colombo, responsável pelo início do genocídio dos povos indígenas americanos.

Eu mesmo acho que a derrubada de estátuas faz parte do final catastrófico de ciclos históricos, sendo o próprio gesto um ato histórico, aliás, inevitável quando a ideia iconoclasta toma conta da cabeça das massas.

Coluna Vendôme - Os agitadores da Comuna de Paris, por exemplo, derrubaram a Coluna Vendôme  no dia 16 de maio de 1871, com a estátua de Napoleão travestido de Júlio César enfeitando o seu topo e tudo. A Comuna foi a primeira república proletária socialista, com duração de apenas dois meses e meio (18 de março a 28 de maio), tendo sido massacrada pelo governo de Thiers com a ajuda do exército prussiano.

Quanto à queda da coluna, sobrou para o pintor e agitador Gustave Courbet (autor do quadro A Origem do Mundo), acusado sem provas de ter liderado a demolição, e obrigado, dois anos depois, a pagar a sua reedificação.

Muito provavelmente o ato entrou na inspiração dos seguintes versos da Internationale, o hino anarquista adotado pelos comunistas, composto pelo poeta communard Eugène Poittier no mês seguinte ao massacre da Comuna:

Il n'est pas de sauveurs suprêmes
Ni Dieu, ni César, ni tribun
Producteurs, sauvons-nous nous-mêmes
Décrétons le salut commun

Não há salvadores supremos
Nem Deus, nem César, nem tribuno
Produtores, vamos nos salvar a nós mesmos
Decretemos a salvação comum

Pilar do Nelson - Outro exemplo clássico de iconoclastia foi a explosão do Pilar do Nelson em 1966, que estava fincado desde 1809 no centro de Dublin, capital da Irlanda. O vice-almirante Horatio Nelson é um dos maiores símbolos do imperialismo britânico, vencedor da Batalha de Trafalgar, em 1805, contra as armadas da França e da Espanha. Depois do Levante da Páscoa dos irlandeses, em 1916, e da fundação da República, em 1922, não tinha mais sentido manter de pé o monstrengo, a despeito das opiniões contrárias de intelectuais como James Joyce e W. B. Yeats, das quais os republicanos discordavam. Um deles tomou a iniciativa de instalar explosivos no pé do monumento em 66, e bum! Até hoje não se sabe exatamente quem foi o autor da façanha.

(Notinha a latere para vocês pesquisarem depois: um dos heróis do Levante da Páscoa, o irlandês  Roger David Casement, ex-cavalheiro britânico, foi o primeiro a denunciar as atrocidades do rei Leopold II no Congo. A partir de 1906, foi cônsul em Santos, Rio de Janeiro e Belém do Pará, e depois investigou e denunciou a exploração escravocrata dos seringueiros do Vale do Putumayo, no Peru. Vargas Llosa conta a sua história no romance O Sonho do Celta).     

Voltando à vaca fria, anotem: iconoclastia é coisa antiquíssima. Na Grécia clássica, os ossos dos heróis de uma cidade costumavam ser sequestrados pelo exército inimigo para abalar o moral de seus defensores.

A história do Cristianismo é das mais ricas nessa matéria, a começar pelo fato de os cristãos primitivos terem adotado alguns dos símbolos publicitários mais eficientes de todos os tempos, o peixe e a cruz. No caso da cruz, um instrumento de tortura dos romanos, configurando um caso típico de obrigar o inimigo a engolir do próprio veneno.

São Chico - São Francisco de Assis, na sua luta contra os ricos, não era muito chegado aos áureos adereços do Vaticano nem às imagens de santos, e é por isso que as igrejas franciscanas primitivas costumavam ser despojadas, quase peladas. Isso não impediu que muitos franciscanos, depois que a Igreja aliciou o movimento de Assis, se tornassem exímios artistas e pintores, a começar por Giotto di Bodone. 

Mais adiante, a idolatria ou adoração de imagens por parte dos católicos foi um dos móveis dos luteranos e calvinistas com vistas à reforma da Igreja. Eles foram implacáveis iconoclastas.

Os bolcheviques também foram vândalos animados. Derrubaram a estátua de Alexandre III, como se vê numa cena do clássico Outubro de Sierguêi Eisenstein, e muitos outros monumentos dedicados aos heróis do Czarismo. Quatro décadas depois, e logo após o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Krushov daria início a outro grande movimento iconoclasta, mandando remover centenas de estátuas do camarada Josef Stalin erigidas por puxa-sacos, o próprio Krushov incluído, durante o período de culto à personalidade do Bigode.

Cinzas - Há uma discussão permanente sobre a manutenção ou não do corpo embalsamado do fundador da União Soviética, Vladimir Lênin, no mausoléu da Praça Vermelha em Moscou a ele dedicado. Por que razão preservar na condição de múmia para visitação pública, como se fosse a relíquia de um santo católico, um dos maiores teóricos do materialismo dialético? Por que não enterrá-lo junto ao túmulo de sua mãe, como ele mesmo pediu? As cinzas de outro teórico materialista, Friedrich Engels, foram lançadas no Mar do Norte. Nem por isso o grande companheiro de Karl Marx foi esquecido… Ideias iconoclastas, essas últimas, né! Mas só porque eu acho que o fetichismo, talvez inevitável, e não apenas o da mercadoria, não combina com a proposta do socialismo… científico!

Por ironia da história, dezenas de estátuas de Lênin foram derrubadas na ex-União Soviética e em vários países satélites depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, como a que se vê no filme Adeus, Lênin, de Wolfgang Becker, sendo transportada por um helicóptero.

Nos Estados Unidos, México, Colômbia, Venezuela e outros países latino-americanos, o maior alvo iconoclástico é Cristóvão Colombo, e não de agora, por simbolizar a inauguração do massacre dos povos indígenas e da espoliação do continente americano durante e após a acumulação primitiva do capitalismo.

Robert Lee - Nos Estados Unidos, monumentos dedicados a vários líderes dos Estados  Confederados do Sul, racistas escravocratas inimigos dos Estados da União, têm sido removidos nos últimos anos por pressão do movimento negro. A figura mais execrada é a do  general Robert E. Lee, comandante do Exército Confederado da Virgínia do Norte, de 1862 até a sua rendição em 1865.

Após o assassinato de George Floyd, o movimento Black Lives Matter reforçou a necessidade de derrubar as estátuas do general país afora, como gesto de respeito aos descendentes dos trabalhadores da escravidão e das vítimas posteriores da segregação racial. O governador da Virgínia, Ralph Northam, concordou com a reivindicação e, na semana passada, ordenou a remoção da estátua do milico erigida na Monument Avenue, em Richmond. Nessa segunda-feira, 8, o juiz Bradley B. Cavedo suspendeu a ordem, alegando compromissos históricos. A queda de braço prossegue.

Logo após a queda de Edward Colston em Bristol, o campeão britânico de Fórmula 1,  Lewis Hamilton, negro, postou o vídeo da cena no Instagram, com a seguinte legenda: “A estátua do mercador de escravos, Edward Colston, sendo derrubada. Nosso país homenageou um homem que vendia escravos africanos. Todas as estátuas de homens racistas que fizeram dinheiro vendendo outros seres humanos deveriam ser derrubadas. Qual a próxima? Eu desafio os governos ao redor do mundo a realizar essas mudanças e a remover pacificamente estes símbolos racistas”. 

Não duvidem: a conclamação de Hamilton é o que vai no coração do povo negro e de grande parte das pessoas antirracistas no mundo inteiro, depois do assassinato a sangue frio, filmado, de George Floyd, cujos funerais estão sendo realizados exatamente nesta terça-feira, 9 de junho, em Houston, Texas. 

Afogar o santo – Os exemplos acima são apenas alguns da história da iconoclastia, envolvendo conceitos como "fetichismo", "idolatria" e "totem". A música Permuta dos Santos, da dupla Edu Lobo e Chico Buarque, relembra alguns casos de idolatria e fetichismo, em que os santos são trocados de lugar para forçá-los a ajudar os fiéis nas suas agruras – falta de terra, trabalho e pão, seca e cheia, por exemplo.

São José é mandado para a matriz da Imaculada Conceição, a Virgem, por sua vez, vai para a igreja do Senhor do Bonfim, e esse é mandado para a capela de São Carlos Barromeu, e assim por diante. Se essas permutas iconoclásticas não funcionarem, o que acontece está no final da canção:

Mas se a vida mesmo assim não melhorar
Os beatos vão largar a boa-fé
E as paróquias com seus santos
Tudo fora de lugar
Santo que quiser voltar pra casa
Só se for a pé

Eu gosto muito dessa música porque eu mesmo, quando era pequeno em Anápolis, aluno devoto da Escola Paroquial de Santana, afoguei uma imagem de Santo Antônio numa barrica d’água pra obrigar o elemento a mandar chuva depois de uma seca de esturricar. Como todo mundo sabe, algumas noivas faziam essa simpatia, e acho que ainda fazem, para apressar o casamento!

Termino com a nota de que, em São Paulo, há um movimento crescente pedindo a retirada das estátuas dos bandeirantes das praças e ruas da cidade, por respeito à memória dos povos indígenas que eles exterminaram. Em Goiânia, por mim, a gente tirava a estátua do Anhanguera da Praça do Bandeirante.

O Agualusa nem precisa ficar amolado. Não estou propondo arrebentar esses monumentos de glorificação ao extermínio de povos. Por que não preservá-los no Museu do Genocídio, Escravidão e Racismo. Não existe? Uai, a gente cria um!


 

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