"A vida é de quem se atreve a viver".


Zizek: “A solidariedade - e a OMS - não é uma conspiração maoísta-leninista, é uma necessidade”.
A naiveté canalha de Slavoj Zizek

João Lanari Bo (*) –

O filósofo/psicanalista/cinéfilo Slavoj Zizek deve ter levado um susto quando acordou e deu de cara com a postagem do ministro Ernesto Araújo, do Itamaraty, intitulada, em tom de manchete sensacionalista: “Chegou o comunavírus”. O coronavírus, disse, “nos faz despertar novamente para o pesadelo comunista”, e Zizek, “um dos principais teóricos marxistas da atualidade”, escreveu uma:

obra-prima de naiveté canalha, que entrega sem disfarce o jogo comunista-globalista de apropriação da pandemia para subverter completamente a democracia liberal e a economia de mercado, escravizar o ser humano e transformá-lo em um autômato desprovido de dimensão espiritual, facilmente controlável.

Ao susto, seguiu-se, certamente, uma gargalhada. Como pode ele, Zizek, um anarco-marxista, para dizer o mínimo, alguém que especula a partir de Hegel e Lacan combinado com Hitchcock e Tarantino, lido e relido por um público fiel em um nicho limitadíssimo do respeitável público, um heterodoxo à margem da academia – vide seu conflito com a poderosa Judith Butler, por exemplo – ser tachado de:

provavelmente o escritor marxista mais lido nos últimos trinta anos. Influencia faculdades e círculos intelectuais “progressistas” ao redor do mundo, que por sua vez influenciam a mídia, que influencia os políticos, que tomam decisões muitas vezes inconscientes da raiz ideológica dos conceitos “pragmáticos” pelos quais se deixam guiar.

É uma pancada, pensaria o filósofo, equivalente à ingestão da sopa de Wuhan, a suposta origem da pandemia. “O globalismo é o novo caminho do comunismo”, afirma peremptoriamente Araújo, que arremata:

Controlar a linguagem para matar o espírito, eis a essência do comunismo atual, esse comunismo que de repente encontrou no coronavírus um tesouro de opressão.

Como se a globalização, processo comandado pela disseminação da tecnologia pelo globo, que suscita e acelera fenômenos globais, da reflexão acadêmica às pandemias, e todos os “globalismos” possíveis, do bem e do mal, fosse algo controlável ou descartável. Hélas! a insistência nos supostos heroísmos e espiritualidades sob perigo sugerem que o mundo se afigura como uma arena política ao estilo de “Game of Thrones”, com anões, parasitas, tiranos musculosos, espertalhões e louras feiticeiras – todos puxando o tapete, uns dos outros, em nome do espírito universal!

E o livrinho do Zizek, afinal o pivô desse devaneio crítico? Cento e poucas páginas de reflexão sobre o “novo normal” que vivemos, com sacadas, melhores ou piores, mas sempre instigantes. Por exemplo: o uso propositalmente provocativo do termo “comunismo” para designar uma suposta solidariedade global que poderá emergir da pandemia. A reação do ministro brasileiro, nesse particular, ocupa provavelmente o topo da reação extremada: a sonoridade mesma das palavras - comunismo, comunista – parece deflagrar surtos histéricos em alguns ouvintes, talvez motivados, diria Freud, por traumas ligados a impulsos libidinais reprimidos.

Que dizer, então, de um mundo em que Boris Johnson nacionaliza ferrovias, Donald Trump manda cheques para a população, e o Estado se apresenta, hélas, insubstituível? A solidariedade - e a OMS - não é uma conspiração maoísta-leninista, é uma necessidade, diz Zizek.

A pandemia, sublinha, não veio para nos punir por estarmos explorando o mundo natural: tais argumentos têm apenas uma função de reassegurar a nós, humanos, nossa naiveté. A grande dificuldade de aceitarmos esse tsunami, insiste, é que esse “mecanismo estúpido de autorreplicação", como ele descreve o vírus, "não esconde um significado mais profundo". É o que é, emergiu desse complexo de agenciamentos, tangíveis e intangíveis, que move o mundo.

É sempre duro lidar com essa barreira do real, real aqui no sentido lacaniano: um real que desconhecemos, mas que sabemos ser incontornável e real, como a morte.

Desnecessário ressaltar que a última coisa a fazer, nessa hora, é jogar lenha na ordem simbólica da política, como faz o post do ministro. Teorias conspiratórias não tem serventia: Kant, outra referência de Zizek, diria que a deontologia contemporânea mais do que nunca implica uma concepção da razão prática que impõe um dever de cooperação internacional.

Em meio a tantos “ismos” demonizados – globalismo, cientificismo, climatismo, migracionismo, antinacionalismo – faltou o principal: oportunismo. Afinal, o que parece embasar o post é o velho e útil oportunismo: ser capaz de escrever algo com tintas de pretensão intelectual, citando Foucault e Agamben, e, ainda assim, ser compreendido pela chefia. Em suma, agradar (outros gastam apenas um curto e grosso twitter para obter o mesmo efeito).
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(*) Editora Boitempo lança “Pandemia”, livro de Zizek sobre a pandemia.

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