José Carlos Peliano (*) –
Era uma daquelas noites em que você está em casa sem nada em particular para começar ou terminar de fazer que olhei em volta, vi o sofá a minha espera, fui até ele e liguei a TV para tentar achar alguma coisa interessante. Foi então, depois de rodar por vários canais, que uma coisa muito mais interessante aconteceu, daquelas que se diz “atirou no que viu e acertou no que não viu”.
E que me marcou até hoje pela pegada certa na veia ou como no futebol com o gol que acabou de balançar as redes, quando marcado por um belo chute que pegou na veia. Essa coisa mexe comigo desde então com desdobramentos interessantes.
Cheguei naquela noite de 2018 ao canal Curta, setembro, e veio na tela o anúncio do documentário Piripkura a começar, de Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge, realizado um ano antes. Intrigou-me a ideia de vê-lo não só porque desconhecia o nome título, embora tenha achado diferente, mas também porque queria ver do que se tratava a apresentação por mostrar remanescentes dos povos primitivos brasileiros.
Foi daquelas realizações cinematográficas que se vê de uma sentada sem despregar os olhos da tela, perde-se totalmente a vontade de ir ao banheiro, pois o corpo sabe da relevância do momento, o coração acompanha todas as cenas e a emoção toma conta da miríade de veias organismo afora. Transcorreram os 81 minutos na tela como se fossem meses indeterminados de vivência, senti-me dentro do documentário vivenciando os “takes”, as falas, as companhias dos dois indiozinhos, Pakyit (Baita) e Tamandua e da floresta exuberante. Gostaria de ter estado na equipe técnica.
A película conta o reencontro dos membros da FUNAI com os dois indiozinhos, os últimos representantes vivos do grupo isolado Piripkura, depois de um bom tempo procurados no meio da floresta do Mato Grosso. A iniciativa foi saber se ainda estavam vivos, dar-lhes assistência de saúde e verificar suas reais condições de sobrevivência.
Os dois, o tio, Baita, e o sobrinho, Tamandua, baixos, acredito com mais ou menos um metro de altura, estavam sempre juntos um ao outro todo o tempo da filmagem fosse andando, sentados ou dormindo em rede. Transmitiam uma simpatia ingênua e pura talvez por já conhecerem o chefe dos técnicos da FUNAI ali presente. Mas só talvez, porque pelo jeito deles se comportavam como crianças no lidar com o mundo exterior, em espontaneidade, curiosidade, inexistência de maldade, empatia. É inacreditável que por isso mesmo tenham sido os únicos a sobreviverem à sanha dos inúmeros desmatamentos ocorridos na região por onde se espalhava seu grupo.
Encontraram-se com os técnicos munidos apenas de uma tocha fumegante feita de fibras de folha com um deles e com o outro de uma espécie de embornal. Nus, descalços, caminhavam despreocupados pela floresta como se fossem pastores das árvores, plantas, bichos, flores, insetos, sons e demais seres invisíveis e encantados. Uma apoteose poética! A poesia agradecia, reverenciava e exaltava!
Os Piripkura, ameaçados há anos por grileiros, tiveram nos dois indiozinhos os únicos sobreviventes de um massacre de madeireiros invasores de seu território ocorrido na década de 80.
Nos últimos anos apesar do constante ataque ao seu território por queimadas, desmatamento e ocupação, eles não vinham tendo proteção e vigilância oficiais. O povo isolado perdeu espaço para os grileiros piratas.
Ano passado tiveram os Piripkura uma nova proteção legal de seu território por portaria da FUNAI com validade de apenas 6 meses, de outubro de 2021 até março deste ano, a menor desde as anteriores concedidas de 3 em 3 anos. E só conseguiram através da pressão política exercida pelas Organizações Indígenas da Amazônia (COIAB) e Observatório dos Direitos dos Povos Isolados e de Recente Contato (OPI), ambas apoiadas pelo Instituto Socioambiental (ISA).
Queimadas, desmatamento e ocupação de grileiros levaram os últimos vestígios do povo Piripkura que vivia ao norte de Mato Grosso. Há somente registros esparsos de sobreviventes que vivem fora da antiga área de proteção. O próprio documentário mostra uma delas que saiu de lá anteriormente.
Ano retrasado soube da morte dos dois sobreviventes. Haviam adoecido e internados não resistiram ao tratamento. Uma pedra cantada, mas intragável de aceitar, tal qual uma morte anunciada. Sem proteção legal e efetiva da FUNAI os dois teriam partido para junto de seus encantados, a cena final do documentário é de rara e dura beleza, inevitável e antecipatória: seguem os dois entre o verde, após tratados pela equipe da FUNAI, sós, levando a inseparável amiga floresta. Um indelével adeus antecipado.
No entanto, soube ontem, 10 de dezembro, de uma indígena Antônia Gavião no acampamento de resistência dos índios, instalado no gramado do Eixo Monumental de Brasília, entre a FUNARTE e o Observatório de Brasília, que se foi o tio ao encantamento, Tamandua, salvando-se o sobrinho, Baita, apenas. Deste ela não tem mais notícia. Do tio, soube pela enfermeira que cuidava dos dois que ele morreu de tristeza ao deixar de comer e beber. O motivo: extinção de seu povo nas mãos criminosas das queimadas, desmatamentos e ocupação ilegal com apoio da FUNAI.
O genocídio assume formas diversas dependendo da estratégia. No caso dos povos indígenas isolados o massacre é pouco conhecido e sentido porque encoberto pela dispersão na floresta. O caso desses dois indiozinhos é emblemático, estarrecedor, profundamente desumano e punível, tomara, pela volta mais cedo ou mais tarde do estado de direito. Não com essa desordem descabida de um desgoverno que ultrapassa todo o bom senso do senso de vida e sobrevivência.
Segue soneto meu de setembro de 2018 em homenagem aos dois então sobreviventes. Que ele sirva de um vírus de humanismo que corroa as tripas dos genocidas!
Pakyit e Tamandua
estica o cobertor pela floresta
toda noite fria ou quente de lua
a escuridão aos bichos empresta
para calada espreita nua
derrama o dia o sol fresta por fresta
dos troncos, galhos, trilhas, terra crua
abre os olhos da vida verde em festa
vai junto com Pakyit e Tamandua
pequenos no tamanho palmo a palmo
as linhas das mãos vão ao infinito
o saber ultrapassa todo o salmo
entre os dois a pureza é o rito
um ao outro o silêncio desce calmo
a floresta os protege por seu grito
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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor, economista