José Carlos Peliano (*) –
Nunca tinha visto de perto uma rendeira operar com bilros na execução de trabalhos que, embora entremeados com fios comuns de linhas resultam em peças finas de rendas. Em geral usadas por mulheres como vestimentas, blusas, corpetes, saias, ou como toalhas e adornos de mesas até contornos de toalhas de rosto, entre outras variedades.
Foi nos arredores de Natal, Rio Grande do Norte, que tive chance de observar três rendeiras operando com bilros em peças coloridas, duas na praia de Tabatinga ao sul e outra praia de Jacumã ao norte. Aquelas em locais contíguos numa coberta de frente à pista da rodovia ao lado de uma capelinha e a terceira em sua própria casa conforme mostra a foto postada aqui.
Todas as três aprenderam com mães e/ou avós desde pequenas quando começaram a experimentar e treinar os primeiros manuseios das mãos com os bilros e os enlaces dos cordões das linhas em cima da grande almofada. Nesta, em geral preenchidas com palhas, capim, folhas secas de bananeira ou qualquer outro material do gênero que a sustente, são afixados os moldes dos desenhos a serem bordados, que são marcados por alfinetes com pontas redondas em pontos básicos por onde se norteiam as guias para os trançados e arremates das rendas.
Até aí se trata do material e dos instrumentos necessários de trabalho a serem manuseados pelas rendeiras. Elas podem trabalhar sentadas em banquetas pequenas para alcançar as almofadas ou até mesmo em pé quando faltam assentos, quando então se apoiam nas paredes para sustentarem as costas.
Parecem operações simples e singelas aos olhos da gente pela beleza que se revestem, como se fossem bailarinas manuais dançando com suas mãos com os bilros aqui e ali nas almofadas, no entanto, requerem muita atenção, destreza, disposição, cuidado e principalmente paciência. Qualquer desatenção, como a melodia de Chico Buarque, faça não, pode ser a gota d’água, prejudicando as tramas e o rendado.
Por ser um trabalho artesanal, onde a arte e a energia da força de trabalho da rendeira saem por suas mãos em balé harmonioso sobre a almofada, todo o processo da confecção é de extrema qualidade e inegável valor, pois vale pela aparência refinada, acabamento, beleza e criatividade.
Consta que o conhecimento das rendas de bilro veio através da colonização portuguesa trazido de alguns países europeus. Como se trata de um trabalho que requer pouco investimento e manutenção para ser dado início e se manter, ele se espalhou pelo litoral do país, em especial nas camadas mais pobres da população para dar trabalho e gerar renda às mulheres.
Entre as três rendeiras que pude ver seus trabalhos de trançados houve momentos nos quais elas aumentavam subitamente os ritmos das mãos em operações “nervosas”, mantendo, no entanto, a mesma elegância de postura e concentração visual para diminuírem os movimentos após.
Os bilros não se misturavam, não se acumulavam nos cantos dos moldes tampouco saiam das mãos. E olhem que eles não eram poucos, amarrados aos cordões de linhas de uma cor só ou de várias cores estavam perto de uns 8 ou 10. Não cheguei a perguntar a elas quantos, mas suponho que a quantidade de bilros utilizados tem a ver com a complexidade da trama a ser executada de acordo com o molde escolhido.
Agregue ao trançado dos bilros sobre a almofada o tempo de trabalho gasto na execução de cada peça. Por não se tratar de operação padronizada e repetida vezes sem conta pela execução em máquinas na linha de montagem, o trançado resultante é como que uma peça de arte, exclusiva, radiante, cuja raridade hoje em dia, o torna cada vez menos encontrado pelo interior litoral do país ou nos arredores urbanos, ao tempo em que lhe dá mais urgência para ser achado, redescoberto, incentivado e mostrado às novas gerações. Afinal o belo e precioso artesanato precisa e deve ser recuperado para festejar a identidade brasileira e regional país afora seguindo a defesa e a luta armorial inesquecíveis levadas em frente a vida toda por Ariano Suassuna.
Dona Francisca Gomes da Silva, nascida em 31 de maio de 1943, geminiana como eu (a foto é dela), trabalha desde os 10 anos com a renda de bilro. Bela senhora, ativa, alegre, tranquila, agradável e conservada nos seus 78 anos. Conta que em sua infância o vilarejo praiano alimentava seus residentes com o sustendo vindo das rendas e da pescaria. As vestes saiam dos bilros das rendeiras e os peixes das redes rendadas dos pescadores. Um enredamento que mantinha a todos. Entristecida, lamenta que “ninguém mais quer comprar renda de bilro”. Daí que a subsistência se torna mais e mais difícil.
Muito provavelmente é mesmo o desconhecimento da existência das rendas de bilros das mulheres e filhas de muitas cidades da região e das demais do país que afeta a falta de procura pelos trabalhos das rendeiras. Norteriograndense, minha mulher, que conhece o trabalho desde menina valoriza as rendas de bilro e as usa em algumas de suas roupas do dia a dia e de ocasiões especiais.
Apesar das dificuldades enfrentadas na vida dona Francisca conseguiu criar 15 filhos dos quais 3 já morreram. Com ela ainda moram 3 deles. Ajuda em sua renda mensal a aposentadoria da previdência, que não é grande coisa. Por ser viúva há 20 anos, tem de se virar sozinha para se manter e segue em frente, mulher doce, mas forte e guerreira. Na falta da venda das rendas de bilro faz serviços caseiros eventuais para terceiros nas casas de praia da região.
É a única que eventualmente ainda faz hoje renda de bilro quando procurada já que a associação que reunia as demais 12 rendeiras deixou de funcionar depois que todas elas foram acometidas pela “chicungunha”, impossibilitando-as de trabalhar por meses pelas dores nas pernas e nos braços. Por outro lado, suas filhas não se interessam por manter a tradição não só porque as vendas estão rareando como porque elas encontram serviços eventuais aqui e acolá.
Sobre a sobrevivência de seu ofício, disse, em suas próprias palavras, “falta a intermediação de nosso trabalho com Natal”, ou seja, precisa ela e as demais voltarem a ser conhecidas pela renda de bilro. Demanda e marketing na linguagem do mercado. Caso contrário, o trabalho vai minguando, minguando, até virar memória dos mais velhos, verbetes em dicionários antigos e dissertações, livros ou textos como este.
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(*) José Carlos Peliano, escritor, poeta, economista.