José Carlos Peliano (*) –
A epidemia de doença infecciosa provocada pelo corona-vírus, a chamada Covid-19, com início no território brasileiro bem no começo do ano passado se propagou num ritmo tão intenso que acabou em pandemia. O Brasil é considerado hoje o pior país no estágio avançado da doença tanto em número de infectados quanto de mortos. Na sequência trágica inúmeras UTIs de hospitais estão abarrotadas sem chances de atender a mais aumento no número de doentes e internados.
Esse quadro já é bem conhecido de todos nós que acompanhamos alarmados a evolução da pandemia dia a dia pelos noticiários. O que talvez não seja tão claro para muitos de nós, no entanto, é o que está também por trás dessa situação calamitosa que o país hoje apresenta. Foi sendo percebida por poucos ao longo da curva ascendente dos doentes, dos brados constantes e indignados dos pesquisadores e cientistas responsáveis e da sofrida sobrecarga de trabalho dos profissionais de saúde nos hospitais e seus auxiliares de atendimento e serviços gerais.
Enquanto a atitude leviana e totalmente desinformada por parte da administração central no Planalto de negação da malignidade da doença prejudicou sobremaneira a preparação de enfrentamento da pandemia logo no surgimento dos primeiros infectados, ela desencadeou por igual uma relativa desatenção dos agentes econômicos especialmente da indústria e dos serviços.
Então, de um lado a deliberada negligência do setor público central e de outro a pouca preocupação de parte dos responsáveis de nossa economia na antecipação de medidas e ações de adaptação dos parques produtivos respectivos, acabaram se encontrando meses após numa encruzilhada de saída imprevisível e desastrosa. A convivência e exposição contagiosa por todos com a Covid-19 junto a um quadro de queda na produção, desemprego, perda de renda e falta de um horizonte de recuperação imediata do estado de coisas.
O pior estaria ainda por vir logo no início do ano seguinte, 2021, com a volta do descontrole e pressão de preços ao provocar inflação generalizada, especialmente nos itens da cesta básica, por conta dos aumentos consecutivos e em pouco tempo da gasolina, gás de cozinha e medicamentos.
Sem a devida atenção, coordenação e acompanhamento pelo governo central desse caótico estado geral pandêmico e econômico, coube aos estados e municípios, cada um a seu jeito, com suas alternativas e possiblidades enfrentar as dificuldades decorrentes. Sem muito sucesso, no entanto, ao se notar a situação desumana a que chegou Manaus pelo número de infeccionados, mortos e sem atendimento necessário por conta da superlotação da rede hospitalar.
Outras unidades estaduais e municipais igualmente passaram períodos de transtornos insuportáveis e mais recentemente o colapso do sistema de saúde em Altamira no Pará. Maricá/RJ foi uma das poucas sob administração contrária à do governo federal que conseguiu sucesso, apresentando reduzido número de infectados e mortos e que já encomendou vacina Sputnik V para toda a população.
Ao tempo em que a economia vinha cada vez pior com quedas mensais de produção, registradas e comprovadas pelas estimativas oficiais, e a pandemia também se alastrando cada vez mais conforme se via nas elevações das contagens diárias de infectados e mortos, o setor financeiro por seu turno vinha muito bem obrigado ao serem observados os resultados de seus lucros. Vários bancos chegaram a atingir níveis consideráveis pelos aumentos alcançados, gerando resultados positivos crescentes. Pelo menos dois fatores contribuíram para isso, a inadimplência de devedores de empréstimos e financiamentos, o que proporcionou o confisco contratual pelos bancos de seus bens e o alto patamar constante das taxas de juros cobradas pelas operações financeiras tanto pessoais quanto empresariais.
O império bancário toma conta da vida do brasileiro e empunha a bandeira privada. O setor público, além de produzir cortes nos gastos sociais e deslegitimar e limitar direitos, como aposentadorias, exceto dos militares, reduz cada vez mais sua participação no financiamento dos investimentos públicos, na criação de moeda, na distribuição de meios de pagamentos e no controle do meio circulante. Esfacela a Petrobras, o BNDES, a Eletrobrás, entre outras empresas e organizações públicas e esvazia as agências regionais de desenvolvimento.
Até o Banco Central, o banco dos bancos, está agora nas mãos da iniciativa privada a cargo do sistema bancário e financeiro. Eles são os que decidem o nível geral da taxa de juros (a chamada Selic) que regula a taxa de referência a ser usada pelos negócios na economia, além das demais medidas para controle da inflação e da taxa de câmbio.
O brasileiro comum está diante de uma situação sem precedentes, num mato sem cachorro, pela falta de apoio do governo central que lhe dê segurança econômica, financeira, sanitária e de desenvolvimento, além de outras garantias de vida e trabalho, agora quase tudo sob controle dos senhores magnatas dos bancos e financeiras.
Esse quadro assustador em maior ou menor grau é o que se passa hoje mundo afora. Segundo o economista Luiz Gonzaga Belluzzo na Carta Capital desta semana “o sistema financeiro é a instância dominante nas relações econômicas do capitalismo de todos os tempos e em todos seus tempos”. Sua articulação às demais instâncias da sociedade é dominante. Prossegue ele “o rádio, a televisão e os jornais empenham-se em convencer os cidadãos da necessidade de se sacrificar, aceitar cortes nos gastos sociais, abdicar dos direitos ou encarar a destruição da economia. Morra nos hospitais sem médicos e sem remédios. Em nome da ciência econômica, do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém”.
Eles dão as cartas na economia até agora desgovernada e têm tudo para aprofundar ainda mais a crise pela qual passa o país uma vez que seus interesses se voltam para benefício de seus acionistas e não para a população em geral. Já se fala em estagflação que é a parada da economia com alta de preços, um quadro assustador ainda mais em período de pandemia sem data de término no horizonte.
Sob o atual governo federal são praticamente inexistentes as chances de alteração desse estado de coisas para voltar a uma condução pública e democrática da economia e do apoio à sociedade especialmente dos grupos mais vulneráveis e discriminados. O dito responsável pelo ministério da Economia joga do lado do mercado financeiro por ter vindo de lá e dele ser parceiro. O residente no Planalto fez o que fez na condução do país e da pandemia. As instituições judiciárias e legislativas federais agem de um jeito e desfazem de outro. Rezar não traz entidades e divindades seja de onde for para ajudar a debelar o mal. Só nos resta indignar, como dizia a querida e saudosa doutora Nise da Silveira, e se preparar para quando chegar a hora de atuar, agir e mudar.
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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor e economista.