"A vida é de quem se atreve a viver".


Antirracistas derrubam estátua de Edward Colston, traficante de escravos no Século XVII, em Bristol, Inglaterra, e a jogam no rio.
É hora de escrever uma história inclusiva

Patrícia Porto da Silva –

Racismo, escravização, etnocentrismo, genocídio são fatos indissociáveis da formação das sociedades capitalistas, cuja face mais sombria se revela em ex-colônias da África e da América Latina.

Justo e necessário revisar a história contada pelos conquistadores, os vencedores, representantes da classe dominante. São narrativas vindas daqueles que fizeram Tiradentes desfilar perante multidões a caminho da forca, e depois exibiram seu corpo despedaçado por ruas da cidade. E que ao mesmo tempo perdoaram seus companheiros de insurreição, pois originários de famílias influentes.

Tais versões denegam protagonismo a segmentos formadores da base social, distorcem episódios de revolta contra a opressão (vide Canudos), criminalizam lideranças populares, e homenageiam opressores.

Não faltam razões para sentir revolta ante a visão do Panteão de Duque de Caxias, em honra do comandante da grande carnificina que foi a Guerra do Paraguai, causadora de prejuízos sentidos até hoje no país vizinho.

Cabe notar que a instalação de uma estátua ou monumento em espaço público inclui custos financeiros e trâmites burocráticos. Vincula-se ao poder, naturalmente, político e financeiro. É de se supor que tais decisões estejam em compasso com interesses da elite, não coincidentes com a perspectiva dos segmentos da base social.

Esse viés deve ter predominado até inícios dos anos sessenta, século passado. Ali o movimento por direitos civis ganha força e maior representatividade, a favorecer o resgate da história dos vencidos, trazendo a seu merecido lugar personagens como Zumbi dos Palmares – homenageado com o monumento erguido na Praça Onze no governo Leonel Brizola e em várias outras cidades brasileiras.

Evidentemente, nem todas as homenagens anteriores deixam dúvida quanto ao mérito do homenageado. Há exemplos irretocáveis que abrangem das estátuas, praças, avenidas e palácios nomeadas em honra a Tiradentes, à estátua do capitão da Seleção brasileira de 1958, Hideraldo Bellini, postado na frente do portão principal do estádio Maracanã. Sem esquecer o grande sanitarista Oswaldo Cruz, a princesa Isabel, a enfermeira Ana Néri, entre outros.

Contudo, a questão central deve ser em que medida a destruição e retirada de estátuas, ou monumentos, serviria ao propósito de corrigir erros históricos e evitar que se repitam.

O ponto tem inflamado discussões, notadamente a partir dos protestos mundiais pela morte de George Floyd. Crime racial que provocou onda de protestos e gerou decisões como a do governo de Antuérpia, Bélgica, de retirar a estátua vandalizada do rei Leopoldo II, responsável pela colonização do Congo belga, acusado da morte de milhões de congoleses.

Mais polêmica foi gerada pela decisão que retirou da lista da plataforma da HBO o filme clássico E o vento levou, de Victor Fleming, pois tal medida toca em critérios de valoração de produtos culturais, inclusive seu potencial de influir no modo de pensar e agir das pessoas.

E por sua vez nos remete a conceitos da psicanálise. Segundo Freud, lembranças reprimidas teriam efeito disfuncional no desenvolvimento da personalidade. A superação do distúrbio se daria por meio de resgate e elaboração da lembrança recalcada, de modo a aliviar tensões contrapostas ao desenvolvimento psíquico saudável.

A psicanálise considera ainda os mecanismos de deslocamento e substituição como próprios de nossa forma de pensar e agir. O primeiro consiste em deslocar um sentimento para um objeto diferente daquele que o provocou.

Ocorre quando o marido teve um aborrecimento no trabalho, “engole”, mas quando chega em casa briga com a esposa. Aquele gesto popularmente conhecido como “descontar no outro”.

A derrubada de estátuas pode corresponder a tais processos. Há uma relação direta entre o destruidor e o objeto da destruição, que tem existência física e constitui uma realidade objetiva que desperta sentimentos agressivos. Mas ali na verdade está uma referência simbólica a alguém que cometeu crimes mas, em vez de punido, foi premiado. Algo digno de ira e vontade de reduzir a pó a absurda honraria, da maneira mais espetacularizada possível, a fim de que o acontecimento sirva como exemplo capaz de prevenir sua reincidência.

Agressões a esses monumentos teriam efeito de catarse coletiva, análogo a rituais em que objetos, bonecos, totens e estatuetas ocupam o lugar de alguém como receptor de ofensas e agressões. Como o costume popular de malhar o Judas na véspera do domingo da Ressurreição.

Já a retirada de tais símbolos precisa produzir efeito mais duradouro. A demolição de um monumento erguido em honra de um falso herói corrige o erro da homenagem equivocada, ao eliminar a parte física da honraria. Mas essa correção é quase tão simbólica quanto o próprio monumento. Isso porque ela faz desaparecer a honraria, mas não os crimes cometidos pelo homenageado, tampouco sua indevida premiação, que permanecem como acontecimentos reais. Em suma, a demolição apaga a lembrança do fato, mas não o fato.

Em decorrência, tem sido realçada a pertinência de explorar o potencial educativo desses marcos, que poderia ser mais producente do que simplesmente fazê-los desaparecer. Isso poderia ser feito por meio de placas informativas colocadas no próprio local, assim como por meio de sua inclusão como parte do currículo escolar. Para obras já retiradas, sugere-se que o espaço seja mantido vazio, identificado com informações históricas para as gerações atuais e futuras, como no caso das Torres Gêmeas.

Importa evitar que o ato de demolição nos iluda com a falsa crença de que os crimes praticados e suas consequências tenham deixado de existir com a eliminação de sua lembrança.

Devemos ter em mente que o risco das homenagens equivocadas e construção de falsos heróis está vivo e presente no contexto da sociedade contemporânea.

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