"A vida é de quem se atreve a viver".


A cerimônia de cremação de Wlademir Dias-Pino será realizada hoje (1/9), às 16h, no Cemitério do Caju, RJ. (Foto: Regina Pouchain)
A poesia brasileira está de luto

Angélica Torres –

Wlademir Dias-Pino eu diria ser o último guardião, intérprete, recriador dos símbolos gutemberguianos à memória do tempo, porque, se atuou como uma revolucionária antena da raça conectada ao seu tempo, também projetou sua obra para mais além, ao propor deslocamentos de escritura e imagens entre significado e significante e lançar cores, formas, volumes, direções, de uma geometria extemporânea e móvel, ao infinito.

Uma vastíssima obra, dedicação à arte como motor de vida, um alquimista que empurra a memória rumo ao futuro é apenas uma fração de como se poderia definir o grande e singular poeta visual, que esteve na gênese da Poesia Concreta nos anos 1950, que inventou o Poema Processo nos 1960 e que nesta última quinta-feira, aos 91 anos, saiu de cena, silencioso e discreto como foi em vida, por uma UTI do Rio de Janeiro.

Filho de um anarquista dono de gráfica que influenciaria seus caminhos e de uma mãe de senso educacional incomum, Wlademir Dias-Pino é aquele de quem nunca poderemos saber o que mentalmente teria desenhado, escrito, inventado, planejado, enquanto acamado no hospital, com aguda pneumonia e coração debilitado. Mas podemos supor que teria, quem sabe, vislumbrado plasticamente o ensaio do voo cósmico que faria, de vez, após pouco mais de duas semanas de internação.

Dedução essa, porque, dele, o Brasil e o mundo herdam o legado de uma profusão de criações verbivocovisuais, que tratadas tipográfica ou digitalmente nos remetem aos subterrâneos gráficos, às magias d’antanho, aos lendários almanaques, a caracteres requintados, figurinhas vibrantes, lousa dos cálculos matemáticos, mapas de tesouros, o relicário de uma memória coletiva imagética e com total liberdade de interação e fruição intelectual e sensorial ao leitor e espectador.

A giga obra de Dias-Pino ainda não foi vista, estudada, conhecida, absorvida amplamente como deve ser, no tempo e em diversos espaços. Em breve estará exposta no Museu Reina Sofia, em Madri, com curadoria do português João Fernandes e apoio, no Brasil, da artista gráfica, fotógrafa e poeta Regina Pouchain (companheira de Wlademir e organizadora de sua obra) e do artista plástico Evandro Salles (diretor do Museu de Arte do Rio – MAR).

Carioca da Tijuca, Dias-Pino viveu em Cuiabá de 1978 a 1993, quando lecionou na Universidade Federal do Mato Grosso, em um especialmente fértil período de criatividade, que levou à criação do Intensivismo. Esteticamente, esse movimento literário propunha uma autonomia para o verso, ao substituir a escritura linear do alfabeto fechado por um esquema livre de leitura em superposições, gerando poemas desmontáveis.

Duas décadas antes de Roland Barthes, o poeta já via e anunciava o código alfabético como o elemento gerador da opressão na sociedade. Via ainda mais, que o elo condutor da lógica na narrativa é um instrumento de tortura, um artifício colonizador e contra essa ditadura, ele e os intensivistas propuseram uma direção de leitura, de baixo pra cima, em espiral, da esquerda para a direita e vice-versa etc. Wlademir dizia que a grande função do poeta contemporâneo é inventar novas inscrições. Ensinava que escrever e ler criam direções e que o que vai perdurar das civilizações é a arte, não os ditadores. Com isso queria dizer que o subliminar é a verdadeira expressão.

Diversos entre si, embora se intercruzem, penetrem um no outro, seus incontáveis projetos são frutos de uma mente matemática de altíssima sofisticação, mas como a dos primórdios da escrita humana, quando números e letras se misturavam entre si. Ler e sorver seus surpreendentes poemas e imagens provoca um choque térmico no imaginário, de inusitado frescor.

É um luxo o Brasil ter o poeta Wlademir Dias-Pino na galeria dos seus gênios. Com sua insistência em fazer ver imagens e poesia libertas de amarras, a comunicação pelo imaginário alforriado, um tempo de verbo silencioso, quem sabe o poeta anteviu e projetou o fim da babel, retirando-se do mundo quando a boataria, o “fakenews” é o que mais “de ponta” a elite dominante tem a oferecer aos citadinos? Quem saberá?

Que sua alma e espírito não repousem em paz, mas continuem como um vórtice de luz e energia brotando de um laboratório misterioso de inéditas e ininterruptas pesquisas e experiências estéticas, seja em que plagas for se assentar nos confins do universo. A Enciclopédia Visual desenvolvida obstinadamente por ele, dos anos 1970 até 2018, contendo 1.021 volumes de imagens coletadas da iconografia mundial e cobrindo uma infinidade de temas, desde os desenhos pré-históricos aos dos quadrinhos, aos clássicos da pintura, às imagens da publicidade, prova que foi assim, ao infinito e à eternidade, que ele se encomendou ao Criador, como memória incorporada ao conhecimento.

*

“é necessário que, na

obra de arte,

o significado

não supere a criação”

*

“o silêncio e

sendo muitos,

chegavam a se emendar

uns nos outros como se não

tivessem mais assunto”

*

“o que incomoda na unanimidade é a falta de espaço”

(Wlademir Dias-Pino, 1927 – 2018)

A cerimônia de cremação do artista plástico e poeta Wlademir Dias-Pino, falecido dia 30/8, será realizada hoje (1/9), às 16h, no Cemitério do Caju, Rio de Janeiro.

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